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Os paradoxos no compliance global com a política de Trump
A ideia por trás do lema Maga pode acabar aliviando o FCPA apenas para empresas nacionais daquele país, para os demais destinatários da norma subsistiriam os rigores da lei
Por Daniel Chierighini Barbosa
O primeiro mandato presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos foi marcado por uma forte expansão do Foreign Corrupt Practice Act (FCPA) – a poderosa legislação transnacional anticorrupção norte-americana. Enquanto há espaço para debate se o instrumento normativo foi desvirtuado como ferramenta do lawfare para defesa de interesses geopolíticos daquele país, o fato é que diversas empresas brasileiras, envolvidas direta ou indiretamente na Operação Lava Jato, arcaram com graves sanções aplicadas pelas autoridades norte-americanas.
O segundo mandato presidencial de Donald Trump parece seguir firme com a defesa de interesses norte-americanos, porém com uma abordagem, no mínimo, curiosa em relação ao FCPA. Logo no início de seu governo, o presidente determinou que os órgãos encarregados de sua aplicação reavaliem as ações em andamento e adotem novos rumos nas investigações futuras. Não há qualquer pudor na decisão de pausar a aplicação da norma, já que a própria ordem executiva menciona que o FCPA precisa estar alinhado com os objetivos da política externa.
Essa pausa forçada aconteceu porque, segundo o entendimento do atual mandatário, a aplicação expansiva e imprevisível do FCPA contra empresas e cidadãos norte-americanos em virtude de práticas comerciais rotineiras acabaria por prejudicar a competitividade econômica do seu país, limitando a segurança nacional dos Estados Unidos, que dependem, em grande parte, que suas empresas obtenham vantagens comerciais estratégicas.
Esses argumentos deixam qualquer departamento de compliance à beira de um colapso nervoso. Não nos parece, pelo menos em circunstâncias normais de temperatura e pressão, que a prática de atos corruptivos possa coexistir pacificamente dentro do conceito de práticas comerciais rotineiras. Essa dissociação semântica se conecta diretamente com o argumento de que o FCPA constituiria um empecilho geopolítico para empresas norte-americanas.
Mas, talvez, essa seja uma tática diversionista utilizada para legitimar o uso da ordem executiva. Isso porque esse poder presidencial decorre da autoridade executiva do presidente, nos termos do artigo II, Seção I, da Constituição norte-americana ou é oriundo de uma delegação dada pelo Congresso, com o propósito de moldar as políticas do seu país.
Considerando que a política externa é prerrogativa do Poder Executivo e a Suprema Corte americana aparenta conservar um histórico de manter deferência nestes assuntos, a pausa no FCPA parece se sustentar no curto prazo. Daí que a hipótese mais plausível para um certo ceticismo com o futuro do compliance é que a sombra do Departamento de Justiça Norte-Americano parece ter minguado enquanto argumento para mobilizar a alta gestão de empresas multinacionais de aderir aos custos transacionais dos programas de integridade. Inclusive, a estratégia de esvaziamento (debunking) de funcionários e recursos dos órgãos encarregados da aplicação da lei pode acarretar, na prática, que ninguém será processado se houver qualquer transgressão da norma.
De toda forma, pode ser que exista, de fato, uma lógica pragmática com a mudança de prioridades do FCPA considerando os recursos disponíveis dos órgãos encarregados para sua aplicação, como pode ser que a mudança esteja conectada com a esfera de interesses de algum segmento empresarial. As razões para este giro hermenêutico, no atual momento, talvez sejam mais especulativas do que fundamentadas em evidências.
O que não se pode descuidar é que o Foreign Extortion Prevention Act (FEPA) – a lei gêmea do FCPA – não foi alvo de nenhuma ordem executiva, o que poderia, em tese, ainda tutelar eventuais procedimentos persecutórios com objetos bastante similares ao FCPA. Além disso, diante de uma pretensa reorganização de prioridades dos órgãos encarregados da sua aplicação, não se deve interpretar que o FCPA foi revogado (já que somente uma outra lei poderia fazê-lo).
Enfim, independentemente das projeções, o curto-circuito proposto pelo chefe do Poder Executivo norte-americano causa alvoroço, sobretudo para nós habituados na experiência jurídica romano-germânica. Já imaginou o atual presidente do Brasil editando decreto regulamentador para suspender os efeitos da nossa Lei Anticorrupção? O nosso sistema inquisitorial jamais toleraria uma negociata dessas com a verdade real.
Mas a hipótese estapafúrdia não anda tão distante do imaginário dos nossos mandatários, já que o uso de ferramentas infralegais à disposição do Poder Executivo têm sido usados alargando as margens da legalidade. Ainda que a ordem executiva e o decreto regulamentador possuam suas gramáticas particulares, considerando as dinâmicas e experiência de ambos os países, estes curiosos casos da pirâmide invertida de Kelsen desafiam os destinatários e intérpretes das normas.
No caso do FCPA trata-se de uma norma estável desde a década de 1970, cuja interação com empresas brasileiras foi relativamente expressiva até pouco tempo atrás. Além do mais, a ideia por trás do lema Make america great again (Maga) pode acabar aliviando o FCPA apenas para empresas nacionais daquele país, para os demais destinatários da norma subsistiriam os rigores da lei. Eu iria com calma nesta história de que o FCPA está com os dias contados.
Opinião por Daniel Chierighini Barbosa
Advogado, é mestre em Direito Civil e em Ciência Política