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Novo Código Eleitoral abre brecha para campanha em igrejas e reduz punição por ‘abuso de poder religioso’
Em análise na CCJ do Senado, artigos ampliam permissões para líderes
Foto: Pedro França/Agência Senado
Por Camila Turtelli e Ivan Martínez-Vargas
Dois artigos incluídos no projeto do novo senador Marcelo Castro (MDB-PI), restringe a condenação de guias espirituais que professem suas preferências eleitorais pelo chamado “abuso de poder religioso”. Além disso, afirma que manifestações políticos-partidárias em templos “não poderão ser objeto de limitações”. Atualmente, a lei proíbe pedir votos em igrejas.
A avaliação de especialistas é que, na prática, a proposta abre brecha para que candidatos possam fazer campanhas nos templos. Entendem, ainda, que a tentativa de mudar a lei representa uma rea Código Eleitoral, em análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, ampliam permissões para a atuação de líderes religiosos durante campanhas. O texto apresentado pelo relator, ção do mundo político a decisões recentes da Justiça Eleitoral sobre o uso eleitoral da fé.
Procurado, Castro nega que o projeto libere campanha em igrejas e argumenta que os artigos incluídos no texto têm como objetivo garantir a “liberdade de expressão”. “O senador reforça ainda que o texto do Código Eleitoral não está definitivamente fechado e que continua acolhendo sugestões”, diz em nota.
O gerente da Transparência Internacional Brasil, Guilherme France, avalia que as permissões previstas podem desequilibrar disputas eleitorais.
— Não podemos negar a profunda influência que autoridades religiosas têm sobre seus fiéis. A participação em atos regulares de campanha, como autorizado pela proposta, por parte destas autoridades, pode influenciar indevidamente os resultados de uma eleição — diz.
O entendimento atual da lei eleitoral considera igrejas, templos, sinagogas, terreiros e demais espaços religiosos como “bens de uso comum”. Nestes lugares, é proibido fazer campanha eleitoral a favor de algum candidato ou acusações contra adversários políticos. Os estabelecimentos podem ser condenados a pagar uma multa.
A regra é estabelecida no artigo 37 da Lei das Eleições. Os bens de uso comum são aqueles definidos pelo Código Civil e aqueles aos quais a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios e estádios, ainda que de propriedade privada.
O relatório do novo Código Eleitoral mantém essa previsão e coloca na norma a definição de bem de uso comum, mas insere uma exceção a “reuniões fechadas ou de entrada restrita, ainda que realizadas em bens civilmente definidos como de uso comum”, o que poderia abrir brecha para a realização de cultos com pedidos de voto.
Em setembro de 2024, um pastor em São Fidélis (RJ), a 328 quilômetros da capital fluminense, foi multado em R$ 2 mil por pedir votos no púlpito de uma igreja para candidatos a prefeito e vereador. Na decisão, o juiz eleitoral destacou o “claro abuso de poder religioso”, evidenciado por vídeos que mostravam o pedido durante o culto.
No caso de candidatos, porém, a legislação atual prevê punição mais dura, que vai além da aplicação de multas. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), por exemplo, entendeu que houve “abuso de poder religioso” ao determinar a cassação do deputado estadual fluminense Fábio Silva (União). Segundo a decisão, durante a campanha de 2022, Silva promoveu eventos batizados de “Culto da Melodia” para proferir discursos políticos e distribuir material eleitoral. Ele ainda se mantém no mandato enquanto aguarda julgamento de recursos. Procurado, não se manifestou.
A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), contudo, prevê a cassação apenas quando o abuso de poder religioso é atrelado a outros tipos de crimes eleitorais, como abuso de poder econômico ou uso indevido de meios de comunicação. Um líder espiritual que usa a estrutura física da igreja e dinheiro para promover eventos políticos, por exemplo, deve ser enquadrado por abuso de poder econômico atrelado à religião.
— O Congresso deveria aproveitar a reforma do Código Eleitoral para tipificar o abuso de poder religioso na lei. Isso é um fenômeno recente e crescente que não é saudável numa democracia. Não posso atrair pessoas com oferta de música e cultura para ouvir propaganda política por meio dos showmícios, por exemplo. Também não deveria poder aproveitar um momento de oração de fiéis para isso — afirma o advogado eleitoral Fernando Neisser, professor da FGV Direito.
Para o advogado Silvio Salata, que integra a Academia Brasileira de Direito Eleitoral, caso aprovado, o texto em discussão no Senado violaria os princípios da isonomia e da paridade de armas. Para ele, o projeto “amplia a garantia de poder fazer campanha, tanto dentro dos templos como a participação da autoridade religiosa em comícios, com a emissão de opinião”.
— A isonomia é quebrada porque uma o líder religioso poderia só permitir que seja divulgada propaganda do candidato que ele apoia. Mas o problema vai além. Pelo princípio da paridade de armas, as pessoas são iguais, mas essa norma pode dar um privilégio político para entidades religiosas divulgarem propaganda eleitoral — ressalta Salata, que afirma que, caso a norma seja aprovada, é possível que a constitucionalidade seja questionada.
Ministro do TSE de 2004 a 2012, o advogado Marcelo Ribeiro também é crítico ao texto que está em discussão na CCJ do Senado. Para ele, as flexibilizações previstas na lei eleitoral refletem o aumento da bancada da Bíblia no Congresso, formada por parlamentares ligados às religiões.
— Fica cada vez mais claro o sentimento de que são permitidos esses desvios da finalidade própria da religião, às vezes tendo bancadas parlamentares próprias. Acaba sendo uma atividade ligada a um projeto de poder político — afirmou ele.
— Tradicionalmente, sempre houve proibição de qualquer tipo de propaganda eleitoral dentro de bens de uso comum, privados ou públicos, ainda que a norma não tenha sido aplicada de maneira uniforme. A nova redação beneficiaria candidatos com acesso a entidades religiosas — completa Eduardo Damian Duarte, do Instituto Ibero-Americano de Direito Público e do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade).
Proposta parada
O novo código substitui sete leis atualmente em vigor: o Código Eleitoral de 1965, a Lei Geral das Eleições, a Lei dos Partidos Políticos, a Lei das Inelegibilidades e as legislações sobre plebiscitos, transporte de eleitores e combate à violência política contra a mulher. Pela proposta, todas essas normas passariam a ser tratadas em uma única lei complementar com 23 livros temáticos. O projeto foi aprovado pela Câmara em 2021 e está sob a relatoria de Castro desde 2022. O senador já apresentou quatro relatórios e realizou uma série de audiências. Além disso, o projeto recebeu 193 emendas.
Castro tem defendido a proposta como uma forma de garantir mais estabilidade jurídica e racionalidade à legislação eleitoral. A perspectiva é que o texto seja votado na CCJ ainda em maio, após o fim de um novo ciclo de audiências públicas que está sendo realizado no colegiado.
Entre as mudanças previstas, o texto flexibiliza a regra que exige ao menos 30% de candidaturas femininas nas eleições para deputados e vereadores, permitindo que as vagas fiquem em aberto caso o partido não consiga atingir o percentual. Em contrapartida, propõe uma reserva de 20% das cadeiras nos Legislativos para mulheres. A bancada feminina do Senado tem criticado a substituição.
A leitura e votação do relatório foram adiadas após pedidos de parlamentares de diferentes partidos. Senadores de PT, PSB e União Brasil e integrantes da bancada feminina pediram a realização de novas audiências públicas. Para valer nas eleições de 2026, o novo Código precisa ser aprovado no Congresso até 3 de outubro deste ano.