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Críticas a sentenças do 8 de janeiro mobilizam bolsonaristas e até governista; juristas veem ‘dupla punição’
Acúmulo de penas por golpe e abolição do Estado democrático gera debate, mas especialistas alertam para risco de ‘discussão deturpada’
Por Bernardo Mello
— Rio de Janeiro
(Foto: Joedson Alves / Agência Brasil)
A duração das punições de condenados pelos atos golpistas do 8 de Janeiro se tornou alvo de críticas na última semana tanto da oposição bolsonarista quanto de aliados do governo do presidente Lula (PT). Além de questionamentos mais genéricos de políticos a um suposto “exagero” nas penas, juristas ouvidos pelo GLOBO divergiram da posição da maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) de acumular as sanções pelos crimes de golpe de Estado e de tentativa de abolição do Estado democrático, o que contribui para punições mais longas.
Eles também avaliam, por outro lado, que o debate fica “deturpado” ao se concentrar apenas no STF, e que a “dupla punição” vem sendo incentivada pelo bolsonarismo, por exemplo, em propostas de reforma do Código Penal.
Até o início de janeiro deste ano, o STF já havia condenado 371 pessoas pelos atos golpistas, sendo a maioria (225) por crimes de maior gravidade, como as condutas de ataque à democracia e de dano ao patrimônio público tombado. As penas mais duras chegaram a 17 anos de prisão, sanção aplicada a 40 réus. Nesses casos, o entendimento da Corte foi de aplicar penas de cinco anos por abolição do Estado democrático e de seis anos por tentativa de golpe.
Aceno de Motta
Recém-eleito para a presidência da Câmara, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) afirmou na semana passada, em entrevista a rádios da Paraíba, que considera haver “exageros” nas punições do 8 de Janeiro, referindo-se de forma genérica a quem “não jogou uma pedra e recebeu 17 anos de pena”. O ministro da Defesa do governo Lula, José Múcio, fez avaliação similar em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, quando defendeu que poderia haver melhor “dosimetria” das sentenças.
A fala de Múcio foi elogiada nas redes sociais do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro. Outros opositores do governo Lula, como o senador Sergio Moro (União-PR), também criticaram as penas. Além de classificá-las como “excessivas”, Moro atacou especificamente a “dupla punição”, sob o argumento de que os crimes de tentativa de golpe e de abolição do Estado democrático configuram “uma única conduta (que) foi enquadrada erroneamente em dois crimes”.
A questão chegou a ser debatida pelo Supremo no início dos julgamentos, em setembro de 2023. À época, os ministros Luís Roberto Barroso e André Mendonça argumentaram que uma das condutas “absorve” a outra, devido à similaridade entre ambas. Eles foram, no entanto, vencidos pela maioria.
— O Código Penal é claro: quando o agente, em uma só ação, comete dois ou mais crimes, você não aplica as duas penas acumuladas. Se o objetivo final era depor o governo constituído, a pena é de 4 a 12 anos, que deveria ser aumentada entre um sexto e a metade ao absorver o crime de abolição do Estado democrático, como manda a legislação — diz Beatriz Alaia Colin, especialista em Direito Penal.
Especialista em Direito Constitucional, o advogado Pedro Serrano concorda que “não é adequado” acumular as duas penas. Ele pondera, por outro lado, que as sentenças mais duras nesses casos cairiam para 12 a 13 anos de prisão, e seguiriam rigorosas. Além disso, Serrano avalia que reduzir a dupla punição a um artifício do STF no inquérito do 8 de Janeiro é um “mecanismo para deturpar o debate”.
— Há certas coisas sendo tratadas como se fossem “invenção” do Supremo e que na verdade são questões do nosso sistema de Justiça como um todo. É comum, por exemplo, combinar a pena de corrupção passiva à de lavagem de dinheiro, no caso de sujeito ter adquirido algum bem com a verba ilícita, quando em muitos casos isso é uma mera extensão do crime de corrupção e poderia ser absorvido por ele — diz Serrano.
Em paralelo às críticas ao Supremo no caso do 8 de Janeiro, a bancada bolsonarista no Congresso vem incentivando a dupla punição, por outro lado, em propostas de endurecimento do Código Penal, encabeçadas pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Flávio tem defendido que “marginais presos por tráfico de drogas usando fuzil” sejam condenados tanto por associação ao tráfico, crime previsto na Lei de Drogas, quanto por porte ilegal de arma de grosso calibre, tipificado no Estatuto do Desarmamento.
A mesma defesa foi feita pelo governador do Rio, Cláudio Castro (PL), que atribuiu problemas do estado na segurança pública ao que chamou de “desqualificação da Lei de Armas” e pediu o acúmulo de penas. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), porém, decidiu em dezembro que o uso de arma para tráfico não pode ser punido em separado.
O criminalista Pierpaolo Bottini argumenta que “não há fórmula matemática” para decidir se um crime “absorve” outro e quando as duas sanções coexistem.
— A questão fica mais difícil quando o que chamamos de “crime-meio” não se exaure totalmente com o “crime-fim”. Por exemplo, se alguém usa a arma para cometer um roubo, entendo que o crime de porte se exauriu no roubo, que é a finalidade do uso da arma. Porém, se a arma continua sendo usada, vira um crime autônomo.