PORTFÓLIO

A hora e a vez das ações por danos concorrenciais
A hora e a vez das ações por danos concorrenciais
Dispositivos da Lei de Defesa da Concorrência, que pavimentam a via judicial às vítimas de cartel, fazem surgir a esperança de que essa importante virada de página constitua o passo fundamental na escrita de um novo capítulo do direito antitruste brasileiro
Por Ernesto Tzirulnik e Lea Vidigal
Embora tenham sido expressamente previstas no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência (LDC), as ações de reparação por danos concorrenciais (ARDCs) apresentam um histórico de insatisfatória disseminação no Brasil, ao contrário de países como os Estados Unidos, onde essas demandas coletivas e individuais de indenização por danos concorrenciais são amplamente utilizadas.
Isso se deve ao fato de que aspectos relevantes à propositura das ARDCs, sobretudo aqueles relacionados ao prazo prescricional para o seu ajuizamento, não haviam sido satisfatoriamente disciplinados pela LDC. Tais insuficiências normativas ocasionaram um cenário de enorme insegurança jurídica no ajuizamento de ARDCs e a produção de uma incipiente jurisprudência pró-cartel, que serviram como estímulo à prática de infrações contra a ordem econômica.
Exemplo disso são os julgados que, desconsiderando a maneira como são formados os cartéis, estabelecem que o termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ARDCs não dependeria da ciência do dano por parte da vítima, e teria o seu início, portanto, na data da violação do direito. Adeptos dessa interpretação absurda parecem acreditar que as vítimas de cartel são avisadas pelas empresas cartelistas sobre a prática dos ilícitos perpetrados. Ora, se o próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), com todo o seu poder investigatório, chega a levar mais de uma década para concluir pela existência de um cartel, de que maneira as suas vítimas poderiam obter tal conclusão desde a prática do ilícito?
Assim, durante mais de uma década de vigência da LDC, empresas comprovadamente lesadas por cartéis simplesmente deixaram de buscar a reparação pelos prejuízos suportados, diante do desestímulo provocado pela legislação e jurisprudência sobre a aplicação privada da lei antitruste (private enforcement) em nosso país.
Contudo, em novembro de 2022, com o advento da Lei nº 14.470/2022, que acrescentou novos dispositivos à LDC, foram estabelecidas alterações substanciais no regime jurídico das ARDCs.
A partir de então, a lei antitruste brasileira passou a estabelecer de maneira expressa: (i) que o prazo prescricional para o ajuizamento das ARDCs fica sustado durante o curso do inquérito ou do processo administrativo no âmbito do Cade (caput do artigo 46-A da LDC); (ii) que o prazo prescricional da pretensão indenizatória é de cinco anos, a contar da ciência inequívoca do ato ilícito (parágrafo 1º do artigo 46-A da LDC); (iii) que a publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade configura a ciência inequívoca do ilícito (parágrafo 2º do artigo 46-A da LDC).
Além disso, a LDC também passou a disciplinar que: (iv) os prejudicados pelos danos concorrenciais terão, em regra, direito a ressarcimento em dobro; (v) a decisão condenatória do Plenário do Tribunal do Cade é apta a fundamentar a concessão de tutela da evidência nas ARDCs.
A introdução desses novos dispositivos na LDC e a sua consistente aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relevantes julgados são dignas de celebração, na medida em que contribuem para a criação de um ambiente hostil não mais às vítimas de ilícitos concorrenciais, mas aos autores destes, já que importantes obstáculos ao ajuizamento das ARDCs foram eliminados pela Lei nº 14.470/2022, servindo de estímulo à difusão da aplicação privada da lei antitruste no Brasil.
A experiência antitruste brasileira revela que a aplicação da LDC pelo Cade (public enforcement), apesar da sua inegável relevância, é insuficiente para a contenção da prática delitiva das empresas cartelistas, cujas condutas anticoncorrenciais estrangulam a inovação e comprometem a prosperidade econômica das suas vítimas, levando empresas ao limite da falência.
Para que os objetivos do antitruste sejam efetivamente atingidos no Brasil, é indispensável que o public enforcement, concretizado pela aplicação de multas administrativas no âmbito do Cade, venha a ser robustamente complementado pelo private enforcement, com a condenação de empresas cartelistas nas ARDCs ajuizadas pelas vítimas de cartel. A previsão da aplicação privada da legislação antitruste não se deu por acaso, mas por necessidade do país e comprovada experiência internacional, o que nos leva a relembrar a sabedoria de Guimarães Rosa. É da sinergia entre o public enforcement e o private enforcement que nasce o poder dissuasório do direito antitruste.
A ainda escassa utilização da ARDCs no Brasil produz, em síntese, uma lei antitruste de pouca eficácia, incapaz de cumprir os objetivos para os quais foi concebida. Desde os primórdios da construção do antitruste no Brasil, que remontam ao Decreto-Lei nº 869/1938, os seus objetivos estiveram ligados à proteção da economia popular, isto é, a realização do bem-estar comum, o fortalecimento da nossa independência econômica e a satisfação do interesse do povo.
Os mencionados dispositivos da LDC, que pavimentam a via judicial às vítimas de cartel, fazem surgir a esperança de que essa importante virada de página constitua o passo fundamental na escrita de um novo capítulo do direito antitruste brasileiro, reconectado às suas próprias raízes, mais atento e protetivo às vítimas de ilícitos concorrenciais, cujos interesses individuais se confundem com as funções do antitruste, com os objetivos da ordem econômica que o estabelece, e com as aspirações de desenvolvimento econômico do país.
Ernesto Tzirulnik e Lea Vidigal são, respectivamente, presidente da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro da OAB-SP e sócio do ETAD – Ernesto Tzirulnik Advocacia; e doutora em direito econômico pela USP e sócia do escritório Lea Vidigal Advocacia.
https://valor.globo.com/legislacao/coluna/a-hora-e-a-vez-das-acoes-por-danos-concorrenciais.ghtml