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PORTFÓLIO

A extensão não tradicional da prevenção à lavagem de dinheiro

11 de outubro, 2023

Por Pedro Arantes e Maria Moura*

Lei brasileira tratou não somente de criminalizar a lavagem, mas também de estabelecer o dever de prevenção em setores mais vulneráveis.

(Foto: Canva)

Não é de hoje que vemos a lavagem de dinheiro na mira dos órgãos internacionais. Acredita-se que o termo tenha sido cunhado em decorrência da Lei Seca americana, nos anos 20, quando a máfia de Al Capone se valeu de algumas lavanderias de imigrantes para justificar falsamente recursos provenientes do comércio ilegal de bebidas alcoólicas. A operação consistia em declarar a lavagem de uma numerosa quantidade de roupas — muito superior ao que, de fato, era higienizado — e informar ao Fisco como lucro dessa lavagem os valores obtidos ilegalmente na venda de bebidas.

Especialmente nos anos 70 e 80, a concepção de lavagem de dinheiro ganhou destaque internacional devido à atuação de Pablo Escobar. Esse contexto foi a razão histórica para que a lavagem, uma vez concebida como crime, fosse, à época, associada ao tráfico de entorpecentes.

Com os anos, passou-se a entender que a lavagem de dinheiro não decorreria exclusivamente da ocultação dos produtos do tráfico, pois diversas outras infrações poderiam ser objeto de manobras para ocultar sua ilegalidade. Além disso, percebeu-se que algumas atividades seriam mais sensíveis à lavagem e que precisariam de maior proteção.

Pensando nisso, a lei brasileira nº 9.613/1998 tratou não somente de criminalizar a lavagem, mas também de estabelecer o dever de prevenção em setores mais vulneráveis, para que não fossem usados com este fim. No seu artigo 9º, foram elencadas quais seriam as atividades que, por serem mais suscetíveis à lavagem, seriam obrigadas a adotar mecanismos de prevenção. A legislação foi além, estabelecendo que os órgãos reguladores e fiscalizadores de cada uma dessas atividades editariam suas próprias normas preventivas, específicas para cada um dos seus mercados.

Atualmente, é comum que se fale em prevenção à lavagem de dinheiro (especialmente sob a sigla PLD) quando se trata do mercado financeiro, de capitais e de seguros. Estes três, devidamente listados no artigo 9º, tornaram-se bastante conhecidos e visados em matéria de PLD, pela robustez de suas regulamentações e pela notoriedade dos seus reguladores. Nesse sentido, o Banco Central do Brasil (Bacen), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Superintendência de Seguros Privados (Susep) se encarregaram de editar algumas das normas regulamentadoras mais completas e atualizadas de PLD, tendo em vista que as atividades decorrentes desses mercados costumam ser bastante suscetíveis à lavagem.

Embora muito se discuta sobre PLD nestes três mercados, há muito o que se falar sobre as demais atividades reguladas pela Lei nº 9.613. Estudiosos atentos ao rol do artigo 9º perceberão que algumas delas são tão quanto ou mais sensíveis do que os três nichos normalmente debatidos. O comércio de joias, pedras e metais preciosos, de bens de luxo e de alto valor, de obras de arte e de antiguidades são algumas das atividades previstas no referido artigo e exemplos de mercados que possuem obrigações de PLD, órgãos regulamentadores e normativas a serem seguidas.

Outro exemplo muito relevante listado no artigo 9º é o mercado imobiliário, considerado um dos meios mais antigos de se lavar valores ilícitos. Globalmente, a vulnerabilidade desse mercado decorre da carência ou mesmo da ausência de regulamentação própria para o setor. Independentemente de se ter ou não a atenção devida, é inegável que as propriedades imobiliárias são suscetíveis à lavagem, tendo em vista os altos valores envolvidos e a valorização dos imóveis com o decorrer do tempo. Um levantamento do GAFI — entidade internacional criada para definir padrões efetivos de PLD — estimou que aproximadamente 30% dos ativos recuperados do crime organizado internacional seriam propriedades imobiliárias. No mesmo sentido, o Conselho Federal de Corretores de Imóveis (COFECI) apurou, em um dos estados brasileiros, que 90% do lucro do tráfico de drogas seria lavado em operações envolvendo compra e venda de imóveis.

Na regulamentação nacional, quando se trata da promoção imobiliária e da compra e venda de imóveis, nos referimos à Resolução nº 1.336/2014 do COFECI. Embora esta norma refira-se diretamente à atividade imobiliária, outras regulamentações visam combater indiretamente a lavagem de dinheiro neste mercado. É o caso, por exemplo, do Provimento nº 88, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sobre os procedimentos de PLD a serem adotados, dentre outros, por oficiais de registro de imóveis. Segundo reportagem do Conjur, em 2022 os cartórios foram responsáveis por 70% das comunicações de operações suspeitas ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras): embora instituições financeiras continuem sendo o principal foco das normativas de PLD, enquanto os bancos realizaram 690 mil notificações ao Coaf, os tabeliães, notários e registradores enviaram mais de 2,5 milhões de registros — quase quatro vezes mais.

Afinal, vários elementos são relevantes para definir a vulnerabilidade de uma atividade à lavagem de dinheiro. A fluidez do valor de um produto, sua rápida valorização, a complexidade e a subjetividade de sua avaliação financeira são apenas alguns pretextos que permitiriam viabilizar a obtenção de valores ilícitos de maneira disfarçada. A exemplo das obras de arte, fatores como o falecimento do autor poderiam rapidamente elevar seu valor devido à imediata aquisição de um status de singularidade.

O GAFI, em suas recomendações de PLD, classifica os comerciantes de pedras e metais preciosos, assim como os corretores de imóveis, como “atividades e profissões não-financeiras designadas” (APNFD), ou seja, embora não sejam propriamente instituições financeiras, também deverão aplicar medidas de PLD e monitorar os riscos identificados.

Na legislação brasileira, várias atividades obrigadas a adotar mecanismos de PLD se enquadrariam em classificação equivalente à APNFD estabelecida pelo GAFI. Embora o Bacen, a CVM e a Susep não sejam os fiscalizadores desses setores, cada um deles têm seu próprio órgão regulamentador ou, na ausência de um, o Coaf assume residualmente este papel — é o caso do comércio de joias, pedras e metais preciosos, cuja regulamentação foi estabelecida pelo Coaf primeiramente na sua Resolução nº 23 e adicionalmente na de nº 36. Já a atividade dos comerciantes e leiloeiros de antiguidades e obras de arte é regulamentada por um órgão próprio: o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que editou as Portarias nº 80 e 396 com as disposições de PLD a serem atendidas por este mercado.

Muito embora a Lei nº 9.613, no seu artigo 14, §1º, dê ao Coaf competência residual para regulamentar os mercados que não tenham órgão regulador ou fiscalizador próprio, alguns casos permanecem nebulosos por não terem sido editadas normas específicas, como ocorre com o comércio de bens de alto valor de origem rural ou animal — listado no rol de atividades obrigadas a adotar mecanismos de PLD, mas sem qualquer tratamento indicado pelas regras estabelecidas até o momento.

É natural que o senso comum acredite que apenas instituições financeiras seriam obrigadas a adotar medidas de prevenção à lavagem de dinheiro. Isso porque, quando se fala em PLD, normalmente temos bancos e fintechs como contexto. Até mesmo o mercado de seguros, fortemente regulado seja pela Susep e pela ANS, costuma ser esquecido por quem não acompanha a matéria. Entretanto, a extensão do rol do artigo 9º da Lei nº 9.613 expõe claramente que muitas outras atividades precisam dar a devida atenção a este tema. É importante sempre lembrar que todas as atividades ali descritas foram listadas justamente pela sua suscetibilidade à lavagem, o que significa que todas estão expostas a riscos dessa natureza, mesmo que em diferentes níveis.

Ainda que as regulamentações de cada mercado tenham diferentes graus de atualização, abrangência e exigência, não há como falar que somente instituições financeiras deveriam se preocupar com a matéria. Pelo contrário: atividades menos reguladas ou com normas desatualizadas correm maiores riscos de lavagem de dinheiro do que os mercados que convencionalmente se adequam às práticas preventivas. Um exemplo bastante claro é que muitas das regulamentações mais antigas sequer exigem que sejam realizadas avaliações internas de riscos — elemento essencial para que o Programa de PLD seja efetivamente delineado para cada instituição. Nota-se também que, em normas mais antigas, os procedimentos para conhecer os stakeholders da instituição se restringem à análise dos riscos provenientes da relação com os clientes, deixando de tratar riscos advindos da relação com colaboradores, prestadores de serviço terceirizados e parceiros de negócio.

Em matéria de PLD, pesa o fato de que se tem a abordagem baseada em risco como uma diretriz internacionalmente reconhecida, ou seja, ainda que a regulamentação não exija algo que seria necessário para se prevenir da lavagem de dinheiro em uma determinada atividade, espera-se do negócio a avaliação dos seus riscos relativos a essa matéria. Assim, os riscos identificados considerados relevantes deverão ser devidamente prevenidos ou mitigados, independentemente de norma que preveja essa obrigação. A abordagem baseada na norma é, portanto, superada pela abordagem baseada no risco, o que afasta a escusa de quem se resguarda no fato de sua regulamentação ser incompleta ou obsoleta.

Em outubro de 2023, será divulgada a versão final do Relatório de Avaliação Mútua do Brasil pela Plenária do GAFI, após visitas realizadas no mês de março para conduzir a auditoria do sistema brasileiro de prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo (PLD/FT). Espera-se que a este momento se suceda a divulgação de novas recomendações e diretrizes a serem observadas por diversas instituições públicas e privadas no país, a fim de se encontrarem em conformidade com os padrões internacionais de PLD/FT.

É preciso conscientizar os profissionais sobre as medidas que precisam ser adotadas em suas atividades para se prevenir dos riscos de lavagem. Além das sanções estabelecidas pela Lei nº 9.613, não estar adequado às regulamentações de PLD é porta de entrada para que terceiros mal-intencionados se utilizem do seu negócio para atividades ilícitas. Mesmo que não seja o desejo do empresário, a falha na prevenção poderá ser atribuída a ele e à sua empresa. Para evitar situações como essa, independentemente do rigor regulatório, será importante que um Programa de PLD seja desenhado para atender especificamente às peculiaridades do seu negócio.

*Pedro Arantes é Head de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Maria Moura é Especialista de Compliance na P&B Compliance. 

https://br.lexlatin.com/opiniao/extensao-nao-tradicional-da-prevencao-lavagem-de-dinheiro

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