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Responsabilidade das plataformas digitais: marco para proteção de direitos fundamentais

4 de julho, 2025

Por Antonielle Freitas

A decisão proferida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no último dia 26 de junho representa um divisor de águas na regulação da internet no Brasil. Ao declarar parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI), a corte não apenas reformula a compreensão sobre a responsabilidade civil das plataformas digitais, como também redefine os limites entre a liberdade de expressão e a proteção de direitos fundamentais no ambiente virtual.

O que mudou?

Até então, o artigo 19 do MCI previa que os provedores de aplicações de internet, como redes sociais e plataformas de vídeo, só poderiam ser responsabilizados civilmente por conteúdos de terceiros mediante ordem judicial específica. A norma buscava evitar a censura privada e resguardar a liberdade de expressão.

Contudo, diante do aumento exponencial de discursos de ódio, desinformação e violações reiteradas à dignidade humana, essa proteção mostrou-se um entrave à responsabilização efetiva por abusos cometidos online.

Com a nova interpretação conferida pelo STF, as plataformas passam a ter deveres mais ativos e imediatos na moderação de conteúdo. Entre os principais pontos da decisão:

  1. Notificações extrajudiciais ganham relevância jurídica: a omissão da plataforma diante de uma notificação feita pela vítima ou seu representante legal poderá gerar responsabilização civil, caso o conteúdo venha a ser posteriormente reconhecido como ilícito pelo Judiciário.
  2. Remoção proativa torna-se obrigatória em casos de conteúdos manifestamente ilegais, como apologia ao nazismo, racismo, pornografia infantil, incitação à violência ou ataques ao regime democrático.
  3. Crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), por envolverem maior subjetividade, continuam dependendo de ordem judicial específica para a remoção, preservando-se a liberdade de expressão nos casos limítrofes.

Casos concretos e impactos práticos

A nova interpretação do STF modifica substancialmente a forma como casos cotidianos serão tratados. A seguir, alguns exemplos práticos que ilustram os impactos da decisão:

  • Ataques em perfis falsos ou anônimos: Antes, uma vítima de ataques por meio de perfis anônimos teria que ingressar com ação judicial para obter a remoção do conteúdo e eventual identificação do autor. Agora, se a plataforma for notificada extrajudicialmente e não agir diante de conteúdo evidentemente ofensivo, poderá ser responsabilizada diretamente pelos danos causados, mesmo antes de decisão judicial.
  • Divulgação de imagens íntimas sem consentimento (“revenge porn“): Em casos de vazamento de imagens íntimas, a exigência de ordem judicial retardava a remoção e agravava o sofrimento da vítima. Com a nova regra, a mera notificação já impõe à plataforma o dever de remoção imediata, sob pena de responsabilização.
  • Conteúdos antidemocráticos e incitação à violência: Publicações que incentivem ataques às instituições, golpe de Estado ou violência contra minorias passam a exigir remoção proativa e imediata, independentemente de notificação ou ordem judicial, dada sua manifesta ilicitude.
  • Fake news sobre saúde pública: Notícias falsas sobre vacinas, epidemias, que tenham potencial de causar danos coletivos ou institucionais exigirão resposta ágil das plataformas, que não poderão mais se omitir sob o argumento de neutralidade.
  • Comentários ofensivos em transmissões ao vivo (lives): Se, durante uma live, houver comentários racistas, homofóbicos ou misóginos e a plataforma for alertada por mecanismos internos (como denúncia de usuários), passa a ter o dever de agir prontamente, seja removendo o comentário, restringindo o perfil ou encerrando a transmissão, conforme o caso.

Observação sobre conteúdos eleitorais

É importante destacar que a decisão do STF não se aplica às normas da legislação eleitoral. O próprio Tribunal estabeleceu que os atos normativos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) permanecem válidos e prevalecem sobre a nova interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Isso significa que conteúdos relacionados a campanhas, candidatos, partidos e processos eleitorais continuam sendo regulados exclusivamente pelas regras específicas do TSE, que já possui competência normativa e fiscalizatória sobre o tema. Assim, eventuais notificações ou pedidos de remoção de conteúdo eleitoral devem seguir os trâmites próprios definidos pela Justiça Eleitoral.

Liberdade de expressão x responsabilidade

A decisão do STF propõe um novo equilíbrio: a liberdade de expressão permanece como pilar da democracia, mas não pode ser usada como escudo para a violação de direitos fundamentais, como a dignidade, a honra e a integridade de indivíduos e grupos.

O novo entendimento não representa censura, mas sim a reafirmação do papel protetivo do Estado diante das vulnerabilidades digitais, responsabilizando os intermediários quando se omitem injustificadamente diante de violações flagrantes.

Desafios para as plataformas

As empresas de tecnologia terão que rever suas políticas internas, aprimorar seus fluxos de moderação e investir em equipes capacitadas para análise jurídica e resposta célere às notificações.

A responsabilização por condutas omissas, especialmente em relação a contas falsas, conteúdo automatizado e publicações evidentemente ilegais, demandará uma transformação não apenas técnica, mas também cultural. A moderação algorítmica deverá ser complementada por critérios éticos e jurídicos mais refinados.

O papel do legislador

Embora a decisão do STF tenha efeito vinculante e repercussão geral, ela também escancara a necessidade de um marco legal mais específico e atualizado sobre responsabilidade digital. Cabe ao Congresso Nacional disciplinar com clareza os deveres das plataformas, os direitos dos usuários e os limites legítimos à liberdade de expressão no ambiente online.

A regulação da internet não pode ser deixada exclusivamente ao Judiciário. É urgente que o Legislativo assuma seu papel regulador com responsabilidade, técnica e visão democrática.

Conclusão

A nova interpretação do STF sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet marca um avanço relevante na proteção de direitos fundamentais no ambiente digital. Ao exigir das plataformas uma postura mais diligente e responsável, a Corte envia uma mensagem clara: a internet não é um espaço à margem da Constituição.

Mais do que uma decisão judicial, trata-se de um marco civilizatório para a convivência online: a proteção da dignidade humana deve prevalecer sobre a lógica da viralização e da monetização do discurso.

Antonielle Freitas

é sócia da área de Proteção de Dados e DPO no Viseu Advogados e membro da Comissão Especial de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP.

https://www.conjur.com.br/2025-jul-03/responsabilidade-das-plataformas-digitais-e-a-nova-interpretacao-do-stf-um-marco-para-a-protecao-de-direitos-fundamentais/

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