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O novo filho do Gugu e a validade do testamento anterior

6 de julho, 2023

Mario Luiz Delgado, Doutor em Direito Civil pela USP e Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia. Diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP e Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM. Foi assessor, na Câmara dos Deputados, da Relatoria-Geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro.

Muito se tem comentado sobre os desdobramentos do inventário do apresentador Augusto Liberato, especialmente após a divulgação de uma ação de investigação de paternidade proposta por um suposto filho do falecido, fruto de relacionamento juvenil muito anterior ao nascimento dos filhos já reconhecidos. A principal discussão diz respeito aos efeitos do testamento em que Gugu contemplou os três filhos posteriores com cerca de 75% de seu patrimônio, enquanto os restantes 25% foram destinados aos parentes colaterais.

Alguns advogados chegaram a afirmar na mídia que o reconhecimento desse suposto filho implicaria o rompimento (quer dizer a revogação) do testamento, com base em uma antiga regra do Código Civil (art. 1.973) segundo a qual “sobrevindo descendente sucessível ao testador, que não o tinha ou não o conhecia quando testou, rompe-se o testamento em todas as suas disposições, se esse descendente sobreviver ao testador“.

Realmente, em surgindo um novo descendente sucessível, que o testador, no momento que fez o testamento, ignorava que existisse, rompe-se o testamento e nada prevalece, ou seja o testamento, na prática, deixa de existir, e todo o patrimônio do falecido será dividido por igual entre os filhos, incluindo aquele reconhecido posteriormente.

A lei, nesse caso, parte da presunção de que o falecido não teria feito o testamento, se soubesse da existência de pessoa ligada a ele pelos mais estreitos vínculos de sangue.

Entretanto, o Código Civil não pode ser interpretado “ao pé da letra”. Aliás, se as leis e os códigos se aplicassem exatamente da forma como as palavras expressas nas suas disposições, a sociedade não precisaria de juristas, intérpretes ou mesmo advogados. A própria ciência do Direito desapareceria. Interpretar o texto legal não é tarefa fácil, exige estudo, cultura apurada e experiência prática, requisitos cuja ausência faz com que muitos derrapem ao realizar a leitura pura e simples da lei.

Voltando ao art. 1.973 do Código Civil, é preciso distinguir duas situações: se na data em que fez o testamento, o testador já tinha filhos ou, se naquele momento, era uma pessoa que se achava sozinha no mundo.

Se o testador já possuía outros herdeiros necessários quando testou, a superveniência do descendente sucessível não atinge a existência e a validade do testamento. Só é causa do rompimento do testamento quando o testador não tinha qualquer outro descendente. Mais um filho que nasce ou que aparece, não rompe o testamento. A lógica do rompimento é a de que o testador, ao testar, acreditava que morreria sem descendentes. Por isso, se soubesse que tinha um filho, não teria feito o testamento.

Logo, se o testador sabia que tinha filhos e herdeiros necessários e testa, e depois surge outro filho, não se rompe o testamento. Só se rompe se o testador ignorava a existência de qualquer herdeiro necessário e testou.

Por essa razão, na hipótese discutida na mídia, envolvendo o testamento do Gugu, mesmo e se reconhecendo judicialmente a existência de outro filho, jamais se poderá falar em rompimento do testamento.

https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/o-novo-filho-do-gugu-e-a-validade-do-testamento-anterior/

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