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PORTFÓLIO

Mudanças no artigo 19: a liberdade de expressão está ou não em jogo?

1 de julho, 2025

Por Isabel Butcher

Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal determinou que o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) é parcialmente inconstitucional. Para os ministros, havia uma “omissão” parcial do artigo, abrindo a guarda de proteções a “bens jurídicos como a de direitos fundamentais e da democracia”, como disse Dias Toffoli. Especialistas ouvidos por Mobile Time estão longe de um consenso sobre a decisão, mas apostam que o Legislativo deverá correr atrás para atualizar a legislação atendendo às novas questões que se impõem. Para alguns, a liberdade de expressão não será afetada ou prejudicada. Mas, para outros, o rigor pode fazer com que as plataformas digitais sejam mais conservadoras e removam o conteúdo suspeito antes de serem acionados.

“A liberdade de expressão não parece estar em jogo” com a mudança de paradigma do artigo 19 do Marco Civil da Internet. É o que acredita Filipe Medon, professor de direito da FGV, ouvido por Mobile Time. O especialista lembra que o STF mantém a aplicação do artigo para um grupo de casos – crimes contra a honra como injúria, calúnia e difamação – que deveriam ainda depender de ordem judicial porque “podem gerar desacordos razoáveis e, por isso, a necessidade de o Judiciário examinar a questão. Não parece que a liberdade de expressão esteja em risco, até porque o Supremo atenta-se para os casos limítrofes, que envolvem crimes gravíssimos ou reprimendas muito severas do ordenamento, mas também para situações de fraudes que têm causado danos rotineiramente na vida das pessoas”, explica.

Para Luís Fernando Prado, sócio-fundador do escritório Prado Vidigal, o entendimento é o oposto. “A liberdade de expressão está, sim, em jogo. Em um cenário em que as plataformas passam a agir como censor por precaução, quem perde é o debate público. E é de se lamentar que essa alteração de regra fundamental do Marco Civil da Internet, por muito tempo considerado como sendo a ‘constituição’ da internet no Brasil, tenha acontecido sem um debate plural, democrático e multissetorial”, critica.

Flávia Lefèvre, especialista em telecomunicações, direitos do consumidor e digitais, e membro do Conselho Consultivo do NUPEF (Núcleo de Pesquisa, Estudos e Formação), acredita que todos os ministros tiveram como referência o poder das plataformas e os “efeitos deletérios de suas práticas algorítmicas”. Mas eles não deram a devida importância da resolução para as repercussões que podem haver “no quadro das atuais disputas geopolíticas” e o potencial de causar “efeito contrário ao desejado”.

“Ou seja, aquele que tiver o conteúdo removido indevidamente pela plataforma, além de ter o ônus de recorrer ao Poder Judiciário, caso tenha o pedido de restabelecimento do conteúdo atendido, não terá o direito de ser indenizado, o que funciona como verdadeiro estímulo para derrubadas arbitrárias e feitas ao critério exclusivo das big techs, contrariando o preceito básico de que quem exorbita no exercício dos direitos pratica ilícito, ficando obrigado a indenizar, como estabelece nosso Código Civil”, escreveu em seu site.

Já Patrícia Peck, CEO e cofundadora do escritório Peck Advogados, alerta para os riscos que as novas regras definidas pelo Supremo podem causar. “De um lado, saímos da situação em que havia dificuldade ou demora de remoção de conteúdos ilícitos e criminosos para uma situação que vai para o outro extremo em que você pode, até por uma questão de excesso de zelo, remover conteúdos legítimos e que deveriam estar garantidos pela liberdade de expressão. Tanto a ausência e a lacuna são prejudiciais como também os excessos de zelo e proatividade podem ocasionar remoções indevidas de conteúdo, o que vai acabar parando no judiciário”.

Prado entende que a decisão do STF “muda profundamente as regras do jogo para as plataformas digitais. Embora diga que não adotou a responsabilidade objetiva, a tese cria presunções de responsabilidade que acabam gerando efeitos parecidos”, acredita.

“Expressões genéricas como ‘falha sistêmica’ ou ‘estado da técnica’ aumentam o risco jurídico para qualquer empresa, seja grande ou pequena. Tudo isso foi feito sob o rótulo de ‘interpretação conforme’, mas altera o coração do Marco Civil, atropelando discussões legislativas em andamento. O resultado pode ser mais remoções de conteúdo por precaução, menos liberdade de expressão e um ambiente menos favorável à inovação”, afirma.

Prado alerta que os mais afetados serão os pequenos e médios provedores de aplicação sem estrutura de moderação. O especialista em direito digital lembra que qualquer plataforma que permita comentários de usuários será impactada. “Isso amplia o risco de censura privada e representa um claro desincentivo à criação de espaços de fala aos usuários”, diz.

A organização internacional sem fins lucrativos Repórteres sem Fronteiras considerou positiva a manutenção dos crimes contra a honra – calúnia, injúria e difamação – dentro do escopo do artigo 19. “Do contrário, qualquer autoridade, cidadão, político, qualquer pessoa que se sentisse alcançada por uma crítica, por uma reportagem de um meio de comunicação, por um posicionamento de um jornalista, rapidamente poderia acionar as plataformas alegando injúria, calúnia e difamação. Para a proteção do jornalismo foi muito importante a decisão do Supremo de manter os crimes contra a honra no artigo 19 conforme a gente tinha solicitado e recomendado que fosse feito”, explica Bia Barbosa, Coordenadora de Incidência no Repórteres sem Fronteiras na América Latina.

Barbosa também reforça a importância de o STF ter sinalizado para que o Congresso Nacional avance em um marco regulatório mais detalhado sobre plataformas digitais. Para a representante do RSF, falta endereçar questões como fake news e desinformação. “Até porque o conjunto de desafios que estão colocados no debate público relacionado às redes sociais vai muito além dos conteúdos ilícitos ou criminosos, que foi onde o STF fincou a sua questão. A decisão do Supremo não trata dos desafios que estão colocados para a distribuição massiva de desinformação no ambiente digital e que causa esse caos informacional que a gente vive hoje. Pensar uma legislação que enfrente esse problema que possa discutir questões como não só combater a desinformação, mas também favorecer a circulação de conteúdo de qualidade, verificado, de confiança, no ambiente digital é algo que vai caber ao Congresso Nacional discutir e olhar para frente”.

https://www.mobiletime.com.br/noticias/30/06/2025/mci-liberdade-expressao/

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