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Fácil só de entrar: por que deixar cadastro do CPF na farmácia dá trabalho?
Tilt consultou especialistas para entender, e o padrão costuma ser o mesmo: para ceder informações o processo é simples mesmo, basta informar algum dado pessoal, como CPF. Ou aceitar um cadastro online.
Agora, se você mudar de ideia e quiser remover seus dados, o trabalho é enorme. Em geral, há uma página com uma série de detalhes a serem observados e você talvez precise até enviar um e-mail pedindo a remoção.
Como ocorre o aceite
Segundo Gisele Truzzi, advogada especialista em direito digital da Truzzi Advogados, o aceite do consumidor (opt-in, na linguagem técnica) ocorre de forma verbal, geralmente atrelado a uma oferta de desconto ou participação de um programa de fidelidade.
A farmácia deve deixar claro o que acontece com os dados das pessoas, onde eles vão parar e o que deve ser feito com eles. Se não faz isso, está violando o princípio da transparência da LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]
Gisele Truzzi, advogada especialista em direito digital
A ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) está de olho na prática das farmácias de pedir CPF. Em um comunicado em maio deste ano, o órgão disse que “há indícios de coleta excessiva” de dados pessoais e que vê problemas no condicionamento de cessão de informações para oferecer desconto em medicamentos.
Quero sair. E agora?
Para ter dados coletados, basta passar algumas informações. Para sair, a conversa é outra. Você precisa entrar em uma página específica da empresa ou até mandar e-mail pedindo a solicitação.
Em tese, a saída deveria ser igual o processo de adesão. A questão, no entanto, é que a perda de dados é mau negócio para a companhia, segundo o advogado Guilherme Braguim, sócio da área de privacidade do escritório P&B.
É trabalhoso, pois os dados são uma moeda valiosa. Quem concentra informações consegue entender o público, padrão de consumo, vender melhor e promover seus parceiros. Então, opt-out [termo técnico para deixar um contrato] é desvantajoso para a empresa
Guilherme Braguim, sócio da área de privacidade do escritório P&B
De acordo com Henrique Fabretti, advogado especializado em direito digital e sócio do escritório Opice Blum Advogados Associados, o fato de o processo ser um pouco mais trabalho é justificado.
Essa complexidade é uma questão de gestão que dificulte o acesso de terceiros às informações por um erro ou por alguém mal-intencionado. Até para que não haja uma remoção indevida de um cadastro
Henrique Fabretti
Apesar de o assunto ser farmácia, a dificuldade de se apagar uma conta em uma rede social ou cadastro é conhecida como “dark pattern”. Trata-se de uma tática de design com “truques e armadilhas” para dissuadir ou convencer uma pessoa a realizar uma ação.
Pessoas não sabem como dados são usados
Com o perfilamento de dados, mais do que padrão de compra, é possível inferir várias informações. Conforme a reportagem do UOL, o fato de uma mulher comprar uma vitamina indicada para quem quer engravidar e creme anti-estria, por exemplo, já aponta que se trata de uma pessoa querendo engravidar ou prestes a ter um bebê.
Farmácias podem vender essa informação para outras plataformas de publicidade e facilitar, por exemplo, que empresas de carro direcionem propaganda para essa pessoa que, eventualmente, precisará de um veículo maior para a família.
“Infelizmente, as pessoas não têm noção do que é feito com os dados delas”, diz Truzzi. Ela cita que existe a possibilidade, por exemplo, de uma farmácia vender perfis de clientes para um plano de saúde.
“Imagine uma pessoa que sempre compra remédios porque é cardíaco. Aí, ela muda de plano de saúde e acaba não informando essa condição. A empresa consulta a base da farmácia e descobre o problema, podendo aumentar o valor da mensalidade”, explica.
Para Braguim, o fato é que falta uma cultura de proteção de dados e privacidade. As pessoas mal sabem que têm direitos e ainda tomam pouco cuidado com relação aos seus dados pessoais. “As coisas melhoraram com a lei, mas ainda faltam muitos passos para que a gente tenha um cenário de conscientização”, afirmou.
O fato é que as pessoas conhecem pouco do assunto, e na maioria das vezes não veem problema em ceder dados para terceiros em troca de um benefício.
Um estudo recente da consultoria KPMG intitulado “Qual o futuro da proteção de dados no Brasil?” reforça essa tese. Segundo a pesquisa, 85% dos brasileiros estão dispostos a ceder dados em troca de descontos.
Por que querem saber o nosso CPF?
O CPF é o ponto de partida que conduz para dentro do universo gigantesco dos dados. Ele está atrelado a uma série de outras informações pessoais: nome completo, endereço, email, telefone. Todos andam de mãos dadas.
Quando pensamos na compra de um produto em uma loja, fornecer o CPF pode ser vantajoso para descontos, promoções e participação em programas de pontos. Mas na outra ponta, a empresa consegue alimentar o próprio banco de dados armazenando todo o histórico de nossas compras —hora, dia, mês, ano, produtos adquiridos, com qual periodicidade.
Em seguida, tudo é cruzado com dados pessoais que podem facilmente nos identificar. Tudo fica ali, salvo no sistema da empresa.
Além disso, 90% dos quase 5 mil serviços disponibilizados pelo Governo Federal são digitais, e grande parte é acessado a partir do número do CPF, como:
- Solicitação de abono salarial
- Consulta e solicitação de valores a receber de dinheiro esquecido em instituição financeira
- Consulta sobre a restituição do Imposto de Renda
- Carteira de Trabalho Digital.
Daí a importância da proteção de dados e da informação correta sobre o porquê dessa solicitação e onde eles serão usados.
*Com reportagem de Simone Machado
https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/09/05/por-que-entrar-cadastro-farmacia.htm