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Cinco realidades do saneamento que o debate midiático tem ocultado

6 de julho, 2023

Rubens Naves, Advogado, Autor de “Saneamento para Todos” (ed. Palavra Livre) e “Água, Crise e Conflito em São Paulo (ed. Via Impressa). Ex-professor de Teoria Geral do Estado (PUC-SP).

Levar água potável e serviço de esgoto para todos os brasileiros é um desafio nacional vital e urgente. O debate sobre como fazer isso de modo acelerado e sustentável – em termos socioeconômicos e socioambientais -, e as decisões que decorrem do modelo de universalização escolhido são, portanto, muito importantes para o País. Mas, infelizmente, esse debate não tem sido, de maneira geral, bem conduzido por defensores de diferentes modelos e pela mídia.

Hoje, mais de 15% da população do País não recebe água potável e 45% não conta com coleta de esgoto. Esses graves déficits devem ser entendidos no contexto da realidade do setor do saneamento no Brasil, que é quase tão repleto de contrastes e injustiças quanto o próprio país.

O fato de que o cenário do saneamento expressa, em parte, as desigualdades brasileiras não é argumento para mantê-lo. Pelo contrário: é exatamente universalizando boas condições de vida para pessoas, comunidades e populações que civilizaremos o País e construiremos uma sociedade mais justa e desenvolvida.

Entre os defensores de diferentes modelos de universalização hoje em disputa, a necessidade de atingir esses objetivos acelerando a expansão do setor é unânime. A questão é o “como”. Qual a maneira mais realista e eficaz de promover uma rápida universalização dos serviços de saneamento (segundo o Marco Legal do Saneamento, até 2033)?

A resposta que predomina no texto do próprio Marco Legal em vigor e na imprensa é clara e simples: privatizando.

Essa resposta, como tem sido apresentada no debate público, além de simplista, oculta pelo menos cinco realidades importantes.

O que precisamos saber

  1. Entre as boas experiências brasileiras no saneamento (algumas que se destacam internacionalmente por sua excelência), inclusive no atendimento a populações de menor poder aquisitivo, várias são dadas por companhias estaduais públicas ou de economia mista, como, por exemplo, a paranaense Sanepar e a paulista Sabesp.
  2. Nas últimas décadas, a experiência internacional demonstra que modelos baseados no simplismo privatista não são adequados ao saneamento básico. Tanto é assim que mais de 200 empresas de serviços integrados de água foram reestatizadas mundo afora. E há exemplos de falência do modelo privatista que afetam nações inteiras. Na Inglaterra, pioneira do modelo privatista (lá o saneamento foi privatizado em 1989), o aumento das tarifas (40% acima da inflação desde 1989, ano da privatização do sistema de saneamento), o descumprimento de metas de aumento de eficiência e redução de desperdício, uma trajetória de insustentabilidade ambiental, contrastam com enormes lucros para altos executivos e grandes acionistas. (Antes das recentes eleições municipais no país, que impuseram uma dura derrota aos conservadores, o fracasso do modelo foi ressaltado por trabalhistas e liberais, que o acusaram de transformar rios ingleses em esgoto a céu aberto.)
  3. Ao contrário do que alguns têm dito e escrito, o Marco Legal aprovado pelo Congresso não é traído quando o atual governo tenta equilibrá-lo permitindo, de um lado, mais participações privadas, e de outro, a sobrevivência de companhias e modelos estaduais, públicos e mistos, exitosos. A verdade é o inverso. O texto original do Marco aprovado pelo Parlamento em 2020 continha condições de continuidade desses modelos. A versão excessivamente privatista da lei hoje em vigor é resultado de vetos ao Marco feitos pelo então presidente Jair Bolsonaro (que assim foi fiel à sua máxima de desconstrução do Estado e do setor público, que tantos retrocessos nos legou).
  4. A proibição, hoje em vigor devido aos vetos de Bolsonaro, de que o poder público municipal – titular, segundo a Constituição, do provimento de serviços de saneamento à população brasileira – escolha se integrar a sistemas regionais operados por empresas estaduais, é uma violação do pacto federativo (já que imposto pela instância federal). Fere também o direito que os entes públicos têm de firmar entre si convênios e contratos assemelhados. Ao obrigar o gestor municipal a deixar esses arranjos – mesmo muito bem-sucedidos e desejados pela população – é um retrocesso democrático, uma vez que limita a escolha de políticas públicas por parte dos eleitos para defini-las.
  5. No atual contexto de necessidade de mitigação de efeitos das mudanças climáticas, com destaque para os relacionados aos regimes de chuvas, a tendência já presente de aumento de escassez hídrica evidencia a necessidade de mais, e não menos, planejamento e gestão estratégica a longo prazo pelo poder público do setor do saneamento – algo que conflita com a busca do lucro a prazos mais curtos que caracteriza a iniciativa privada.

Qualificar o debate é urgente

Levar em conta essas realidades não equivale a afastar a iniciativa privada do setor do saneamento. Esse seria um simplismo tão equivocado quanto o do privatismo. Antes dos vetos presidenciais, o Marco Legal do Saneamento – fruto de amplas negociações, incluindo governos estaduais e representantes da sociedade civil – articulava uma compreensão mais realista e pragmática, evitando os extremos simplórios (ou interesseiros) e se norteando pelo verdadeiro interesse público, na busca pela universalização sustentável.

Os recentes decretos do presidente Lula, já parcialmente derrubados pelo Congresso, buscavam restabelecer o equilíbrio do Marco Legal entre público e privado. Pragmaticamente, os dispositivos dos decretos rejeitados no Parlamento, ao manter a possibilidade de arranjos públicos regionais, buscavam aprimorar o que tem funcionado bem, mudar o que é ineficiente e ampliar o sistema para incluir as populações desassistidas por meio da sinergia entre atores diversos.

É verdade que, como muitos já têm apontado, o governo cometeu erros de forma e tática. As mudanças deveriam ter sido esclarecidas para o Congresso e a sociedade, e articuladas politicamente, e não simplesmente baixadas por decreto.

Àqueles que – no governo, no próprio setor do saneamento e na sociedade civil – se guiam pelo interesse público, cabe agora unir esforços para que esse debate seja mais bem-informado, esclarecedor e, portanto, mais democrático.

A gestão das águas e recursos hídricos é vital demais para o futuro do país para que decisões de grande impacto a longo prazo sejam tomadas com base em slogans simplórios.

https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/cinco-realidades-do-saneamento-que-o-debate-midiatico-tem-ocultado/

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