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Tem dívida com o banco? O que muda com o Marco Legal das Garantias
Legislação deve facilitar acesso ao crédito e retomada da garantia pelo credor em caso de inadimplência. Mas há riscos, dizem especialistas
Fábio Matos
(Foto: Imagem de cookie_studio no Freepik)
Sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no fim de outubro, o Marco Legal das Garantias (Lei nº 14.711 de 2023) tem potencial para criar um círculo virtuoso na economia brasileira, desburocratizando a concessão de crédito no país, diminuindo o riscos dos credores e estimulando a redução das taxas de juros dos empréstimos.
Entretanto, segundo especialistas ouvidos pelo Metrópoles, ainda há dúvidas sobre os reais impactos das mudanças na relação entre credores e devedores, além de riscos como o superendividamento e até um aumento da inadimplência, principalmente envolvendo pessoas com menor poder aquisitivo.
Oriundo do Projeto de Lei nº 4.188/2021, de autoria do Executivo ainda sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o marco das garantias foi aprovado pela Câmara dos Deputados, em junho de 2023, e pelo Senado, em julho, com algumas alterações. De volta à Câmara, o texto foi novamente chancelado pelos deputados no início de outubro.
O que muda para credores e devedores
A lei publicada no Diário Oficial da União no dia 31 de outubro estabelece novas regras e condições para a realização de penhora, hipoteca ou transferência de imóveis para o pagamento de dívidas. O texto permite que um mesmo bem possa ser dado como garantia em mais de um pedido de empréstimo.
Em linhas gerais, o novo marco legal permite ao devedor contrair novas dívidas com o mesmo credor da alienação fiduciária original, dentro do limite da sobra de garantia da operação. A alienação fiduciária é a garantia dada em uma negociação de compra de bens. Trata-se de uma modalidade de financiamento por meio da qual o devedor, para garantir o pagamento de algo, o transfere para o credor enquanto paga por aquele bem.
No caso de um imóvel, por exemplo, a propriedade é transferida ao credor até o pagamento total da dívida – embora seja possível continuar utilizando o bem. O procedimento é feito em cartório, sem a necessidade da intermediação de um juiz. Após a dívida ser paga, a propriedade da garantia retorna ao proprietário original.
Trocando em miúdos, caso o valor garantido por um imóvel no primeiro empréstimo seja de R$ 300 mil e a dívida original seja de R$ 100 mil, o devedor poderá tomar novos empréstimos junto ao mesmo credor por um valor de até R$ 200 mil. Até então, o imóvel só poderia servir de garantia para uma operação, mesmo que fosse de um valor menor.
A nova lei também institui a figura do agente de garantia, que será designado pelos credores para trabalhar em seu benefício – ele poderá gerenciar os bens e executar a garantia, além de atuar em ações judiciais sobre o crédito garantido. O Marco Legal das Garantias permite, ainda, que o tabelião de protesto de dívidas não pagas envie uma intimação para o devedor por meio de aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp. A intimação será considerada cumprida já a partir da indicação de recebimento da mensagem pela plataforma digital.
Dados do Banco Mundial mencionados pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban) mostram que apenas 18% do total dos empréstimos é recuperado no Brasil – índice bem inferior aos 80% dos países desenvolvidos.
“Embora o marco legal tenha um enorme potencial de trazer mudanças que podem beneficiar o mercado de consumo e o custo dos empréstimos, é difícil afirmar, com certeza, que ele levará a uma redução na taxa de juros. Será necessário acompanhar a implementação da lei para avaliar seus efeitos completos. Não é algo automático”, afirma o advogado Ricardo Martins Motta, especialista em Direito do Consumidor e sócio responsável pela Área de Relacionamento com o Mercado no Viseu Advogados.
Segundo Motta, apesar de meritória, a nova lei pode gerar “um risco de superendividamento, com o aumento da insolvência”. “Pela falta de controle, há esse risco de superendividamento. Com a possibilidade de utilizar o mesmo bem para a garantia de múltiplos financiamentos, as pessoas podem vir a fazer mais financiamentos do que precisam e se superendividar. Isso pode criar uma bola de neve”, avalia.
“Pensemos em uma pessoa mais humilde, que tenha um apartamento do Minha Casa Minha Vida no valor de R$ 300 mil. Ela já fez um financiamento de R$ 50 mil e comprometeu os bens. Está sobrando R$ 250 mil. Essa pessoa está endividada. Com a nova regra, ela poderá fatiar o bem. Abre-se uma possibilidade para essa pessoa fazer um novo financiamento a partir do fracionamento de um bem. O marco é interessante, mas precisamos ver como vai funcionar na prática. É aí que entram os problemas.”
Renata Cardoso, sócia de Bancário, Operações e Serviços Financeiros do Lefosse, entende que a possibilidade de fatiamento do mesmo imóvel é positiva e deve facilitar a concessão de crédito e reduzir custos. “Já tentávamos mimetizar isso contratualmente. A gente tentava criar essa sequência de ônus em cima de um mesmo imóvel. Havia dificuldades e limitações para conseguir fazer registro dessas garantias”, diz. “Essa medida potencializa o uso de um dos bens mais valiosos que temos, que é o imóvel, um bem estratégico. Você possibilita o uso da potencialidade de valor daquele ativo para a concessão de crédito.”
“Há uma redução no custo transacional. Quando você fraciona valores de um bem na hora de conceder a garantia, acaba pagando menos no custo de registro da garantia no cartório, o que não era possível antes”, afirma Renata.
Avaliação semelhante é feita por Maria Victória Santos Costa, advogada especializada em direito cível, imobiliário e sucessão empresarial e sócia do escritório MV Costa Advogados. “A permissão para que um mesmo bem seja dado como garantia em mais de uma concessão de crédito é um avanço, assim como a criação de medidas extrajudiciais para a recuperação do crédito, que anteriormente abarcava apenas a alienação fiduciária e agora possibilita o mesmo procedimento para a hipoteca. A consequência disso é a maior celeridade e efetividade na recuperação do crédito e o incentivo à renegociação”, opina.
A advogada, no entanto, faz uma ponderação sobre o real alcance dessas modificações, que dependerão de outros elementos para se concretizar efetivamente. “A medida, em tese, é positiva, mas seu sucesso dependerá de uma série de outros fatores, como a política monetária e a situação econômica do país”, afirma.
“O Marco Legal das Garantias é uma parte importante de um conjunto de medidas”, corrobora Renata Cardoso, do Lefosse. “Acredito que os objetivos serão alcançados no médio prazo. Essas coisas que envolvem crédito levam um tempo para surtir efeito. Mas isso deve ser parte de um projeto maior e de uma necessidade de reforma mais profunda.”
Para Ricardo Motta, do Viseu Advogados, há outros possíveis problemas decorrentes do Marco Legal das Garantias, para os quais ainda não se deu tanta atenção. “Uma outra questão complicada é o conflito entre credores. Essa nova legislação pode gerar uma disputa sobre a preferência de credores na execução de garantias quando nós tivermos um cenário de inadimplência e insolvência. Este é um ponto muito delicado para o qual poucas pessoas estão olhando”, alerta.
“A possibilidade de execução mais rápida da garantia imobiliária também é controversa. Ela pode reduzir o direito de defesa do devedor”, prossegue Motta. “A facilidade da execução da garantia vai levar a um aumento de execuções e perda de bens, especialmente em períodos econômicos desfavoráveis. Toda essa complexidade do marco de garantias vai exigir uma atenção muito cuidadosa do Poder Judiciário, do mercado financeiro e dos próprios consumidores. É preciso garantir que os objetivos do marco sejam atingidos, mas sem prejudicar direitos individuais.”
Apreensão de veículo sem autorização judicial é vetada
Ao sancionar o Marco Legal das Garantias, Lula vetou a possibilidade de apreensão extrajudicial de veículos, que seria permitida quando o devedor não entregasse o bem dentro do prazo determinado. Deputados e senadores haviam decidido que os cartórios ficariam autorizados a determinar esse tipo de apreensão. Segundo o presidente da República, a medida seria inconstitucional, “violaria a cláusula de reserva de jurisdição e, ainda, poderia criar risco a direitos e garantias individuais”. Os vetos do Executivo podem ser mantidos ou derrubados em sessão conjunta da Câmara e do Senado, que analisarão as mudanças feitas no texto.
Em sessão realizada no dia 26 de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, por 8 votos a 2, que, em caso de atraso no pagamento de um financiamento imobiliário, bancos e outras instituições financeiras podem tomar o imóvel caso tenha sido dado como garantia, sem necessidade de decisão judicial. O veto de Lula trata de bens móveis, como veículos, e não de imóveis.
De acordo com dados da Febraban, a alienação fiduciária representava, até agosto deste ano, cerca de 99% do financiamento bancário referente à aquisição de imóveis, com 7,8 milhões de operações ativas garantidas por esse modelo.
No caso dos imóveis, se aumenta a chance de o devedor perder o bem caso não honre suas dívidas, também diminuem os riscos do credor – o que permite que os juros praticados sejam menores e o crédito se torne mais acessível. Atualmente, o crédito imobiliário tem juros médios de 11% ao ano, ante 91% dos juros do crédito pessoal.
Segundo a advogada Renata Cardoso, houve um “descompasso” entre o veto de Lula e posicionamentos recentes do Judiciário. “Esse veto presidencial vai na contramão do que vem sendo interpretado pela Justiça. O fato de a lei permitir que você faça uma execução de uma garantia extrajudicialmente não tira do devedor a possibilidade de questionar algo em juízo. Até por ter vindo logo depois dessa decisão judicial, o veto me pareceu fora de contexto”, afirma.