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Reforma tributária: Haddad vê com cautela artigo que permite a Estados criar contribuição

12 de julho, 2023

Para Haddad, ‘inovações’ inseridas de última hora na reforma geram uma ‘preocupação’

Por Jéssica Sant’Ana, Caetano Tonet, Julia Lindner, Adriana Aguiar e Beatriz Olivon
De Brasília e São Paulo

(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Alvo de críticas do agronegócio, da mineração e da indústria petrolífera, o artigo incluído na reforma tributária que permite aos Estados a criação de uma contribuição sobre produtos primários e semielaborados teve o apoio da maioria dos governadores, após movimento liderado pelo Centro-Oeste, mas não contou com o apoio do Ministério da Fazenda, apurou o Valor.

Integrantes da pasta têm evitado tecer críticas diretas à inclusão do artigo, mas admitem, reservadamente, que foi uma decisão política do Parlamento. O trecho foi aprovado dentro de uma emenda aglutinativa, após a votação em primeiro turno do texto-base da reforma. Técnicos lembram que o papel da Fazenda é subsidiar o debate, municiando os deputados com pontos positivos e contrários a cada medida tomada, mas que a decisão final cabe ao Congresso.

Questionado especificamente sobre essa possibilidade de os Estados criarem um novo tributo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que as “inovações” inseridas de última hora no texto criam uma “preocupação maior porque foram pouco debatidas”.

Ele defendeu que o Senado faça alterações no texto, sem exemplificar quais, citando somente a necessidade de reduzir exceções à alíquota padrão do futuro Imposto sobre Valor Agregado (IVA). O ministro sinalizou, ainda, não ver problemas em fatiar a reforma tributária para promulgar os pontos de consenso e debater os trechos sem acordo.

Indicado para relatar a proposta no Senado, o senador Eduardo Braga (MDB-AM) disse em entrevista ao Valor que ainda não tem opinião formada sobre o assunto. Ele afirmou que vai ouvir as pastas da Fazenda e do Planejamento antes de fazer uma avaliação sobre a medida.

“Não dá para a gente cravar, mas é uma coisa que a gente tem que olhar com cuidado”, afirmou o parlamentar. “Tudo isso vai ter que ser analisado. Vai ter um impacto na inflação brasileira, porque a base da alimentar brasileira vai ser impactada.”

O Valor apurou que, apesar de o movimento ter sido liderado pelo Centro-Oeste, a maioria dos Estados concordou com a inclusão na reforma tributária do artigo que permitirá a criação do novo tributo. O acordo foi fechado para garantir que todos os Estados tivessem parte de suas demandas atendidas. Também foi uma forma de viabilizar a votação.

Porém, fonte ligada aos Estados destaca que, como alguns governadores conseguiram incluir na reforma pautas que não foram acordadas por maioria, como os critérios de governança do Conselho Federativo, o apoio ao artigo “perde substância”. “Não sei como isso se concretizará no Senado”, disse essa fonte.

Reservadamente, um governador afirmou que não vê problemas em manter o trecho incluído na reforma, se for para garantir a votação da PEC no Senado. Ele também disse ser cedo para avaliar se a supressão do artigo pode acarretar perdas de apoios importantes para a reforma.

Já a secretária de Economia de Goiás, Selene Peres Peres Nunes, afirmou que o trecho é necessário para financiar investimentos em obras de infraestrutura, como em rodovias para o escoamento da produção agrícola. “Somos favoráveis à manutenção do fundo de infraestrutura, porque esses investimentos são necessários para escoamento da produção e faz mais sentido que a contribuição seja cobrada de quem trafega com carga pesada e depende do bom estado das rodovias para produzir”, afirmou.

Ela afirmou que Goiás tomou conhecimento da iniciativa através de outros Estados e se manifestou favorável ao artigo, mas que a manutenção do trecho é um ponto acessório, que não muda as duras críticas que o Estado tem feito à reforma.

Atualmente, alguns Estados já cobram uma contribuição de empresas para financiar investimentos em infraestrutura. Porém, essa colaboração é voluntária e feita através de fundos (com vantagens para as empresas que aderem), pois os entes não têm competência para instituir esse tipo de tributo.

Já o artigo incluído na reforma permite que, constitucionalmente, os Estados cobrem essa contribuição, que deixaria de ser voluntária. O objetivo seria financiar investimentos em obras de infraestrutura e habitação, em substituição aos fundos estaduais.

O trecho tem preocupado os setores de mineração, do agronegócio e a indústria petrolífera, os mais atingidos. Uma coalizão deve ser fechada entre associações e entidades para tentar derrubar o artigo no Senado.

Advogados tributaristas consultados pelo Valor afirmam que pode haver questionamento na Justiça, caso se mantenha no texto final o artigo. De acordo com o advogado e professor da FGV e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) Carlos Eduardo Navarro, sócio do Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella, não houve nenhuma discussão sobre essa previsão, que foi incluída de última hora no texto aprovado na Câmara.

Do jeito como está, segundo Navarro, “foi dada uma carta em branco para os Estados fazerem o que quiserem e os contribuintes ficam muito desamparados”, diz. “Essa contribuição, sem dúvida, é a pior notícia da reforma, ao criar mais um tributo, sem qualquer tipo de parâmetro ou limitação do legislador”, afirma.

Segundo o professor, o artigo somente institui que serão tributados os produtos primários e semielaborados e a data que esse tributo deixaria de ser cobrado, no dia 31 de dezembro de 2043. Mas não diz em qual tipo de operação incidiria, se na exportação, comercialização, se toda a cadeia seria tributada (plurifásica) ou apenas uma etapa da cadeia (monofásica). “Não há o menor desenho sobre esse novo tributo, que pode ser objeto de questionamento por estar fora do sistema tributário previsto na Constituição”, diz Navarro.

Para o advogado Tércio Chiavassa, do Pinheiro Neto Advogados, o artigo aprovado é muito aberto e preocupante. “Tem-se um receio do que se pode fazer com ele”, diz. Para Chiavassa, se o dispositivo for aprovado sem mudanças, poderia ser questionado judicialmente por violação ao artigo 155, inciso II, da Constituição, que diz sobre a competência dos Estados para instituir impostos.

Como mostrou o Valor na segunda-feira, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), um dos setores que seriam afetados, também demonstrou preocupação e defendeu que o texto seja alterado no Senado.

Ao Valor, o ex-ministro da Defesa e diretor-presidente do Ibram, Raul Jungmann, afirmou que o artigo incluído é obscuro, porque permite as mais diversas interpretações. “Se tiver curso, vai ser judicializado”, disse. Ele defendeu que o Senado atue com independência em relação à análise do trecho, pois, em emenda constitucional, nenhuma das Casas é revisora da matéria.

https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/07/12/fazenda-ve-com-cautela-artigo-que-permite-a-estados-criar-contribuicao.ghtml

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