PORTFÓLIO
Rateio administrativo nos contratos de gestão na área da saúde
Passados mais de duas décadas de implementação do modelo de parcerias com organizações sociais no estado de São Paulo, é cada vez mais comum que uma mesma instituição gerencie mais de um equipamento de saúde, a partir da celebração de diversos contratos de gestão.
Essas entidades normalmente centralizam as suas operações administrativas, distribuindo os custos compartilhados entre todas as parcerias, respeitada a proporcionalidade de participação de cada uma na despesa. Essa prática é conhecida como rateio administrativo.
Dessa forma, o rateio administrativo pressupõe a distribuição proporcional de despesas que não podem ser atribuídas exclusivamente a um único contrato, pois beneficiam o conjunto das parcerias como um todo. É o caso de despesas com RH, administrativo, assessoria jurídica, serviços de contabilidade ou TI.
O rateio contribui para a economia de recursos públicos, pois, ao centralizar as operações, elimina-se a necessidade de que cada unidade firme contratos individuais para serviços idênticos, resultando na redução de custos e prevenindo a subutilização de pessoal e fornecedores. Além disso, o rateio melhora a eficiência administrativa, já que a centralização permite a aplicação de soluções uniformes para desafios compartilhados por todas as parcerias.
Resolução SS nº 107
No campo da saúde, o tema é regulamentado pela Resolução SS nº 107, de 8/11/2019. Em seu artigo 3º, a normativa permite o rateio de despesas relacionadas às atividades executadas na sede das entidades, desde que atendam aos critérios da rastreabilidade (capacidade de comprovação documental da despesa), clareza (visualização da pertinência da despesa com o objeto da parceria), proporcionalidade (participação de todas as unidades na medida da sua participação, devendo a organização social integrar a planilha) e economia (comprovação de que o rateio é menos oneroso ao erário).
O artigo 4º acrescenta que a despesa rateada deverá ser “necessária” à execução do contrato de gestão.
Por sua vez, o artigo 5º estabelece um extensivo rol, de natureza exemplificativa, de despesas que não poderão ser rateadas.
Apesar da sua redação confusa, a interpretação dada pela Secretaria de Saúde é que tais despesas não poderão ser objeto de rateio por ausente o requisito da sua indispensabilidade para o alcance da parceria. Isto é, ainda que vinculadas à execução do objeto do contrato de gestão, as despesas não poderão ser arcadas com recursos públicos por supostamente serem dispensáveis ao cumprimento da parceria.
Pressuposto falso
Aqui reside um dos principais problemas da resolução: ao excluir determinadas despesas do rateio de forma absoluta e categórica, ela parte de uma presunção de onisciência sobre todas as práticas das organizações sociais, ignorando a complexidade do universo das parcerias e as particularidades de cada entidade e unidade de saúde contratualizada.
Na medida em que a dispensabilidade das despesas elencadas para o alcance das parcerias é estabelecida de antemão, parte-se de um pressuposto falso de que todas as parcerias possuem, em sua totalidade, as mesmas características.
Tomemos como exemplo um caso de um hospital localizado numa zona remota: para a gestão eficiente, podem ser necessários gastos com viagens e alimentação de funcionários da organização social. O mesmo pode não ser verdade para um ambulatório localizado na zona central, gerenciado por uma entidade cuja sede esteja localizada no mesmo território.
E, nesse sentido, há divergência nos entendimentos dos próprios órgãos de controle. Podemos citar um caso recente, julgado em 2022, no qual a Corte de Contas reconheceu gastos com transportes (motoboy) como “essenciais para o pleno funcionamento da entidade responsável pela gestão dos serviços pactuados junto ao Poder Público” [1].
Já no caso da Tomada de Contas TC-005784.989.18-8, julgada neste ano, entendeu-se como regular o rateio de despesas com manutenções preventivas da sede da contratada, entendidos como “custos indispensáveis ao funcionamento” da entidade [2].
Em ambos os casos, a Resolução SS nº 107/2019 veda o rateio de gastos com empresas de entrega, inclusive motoboy, e com manutenção da estrutura física da entidade gerenciadora, por entender que não são indispensáveis para o alcance da parceria (artigo 5º, incisos I e VI).
Necessidade de revisão
Esses elementos apontam para a necessidade urgente de revisão da normativa para garantir segurança jurídica ao modelo das organizações sociais.
A regulamentação deve partir de uma premissa de confiança e cooperação, tendo como foco o estabelecimento das diretrizes gerais do rateio, sempre com a devida comprovação dos gastos e dos benefícios concretos aos serviços de saúde.
Um exemplo positivo que pode ser citado é a Portaria nº 555/2023, editada pela Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, que permitiu o rateio de despesas nas parcerias municipais, desde que observados os critérios de rastreabilidade, clareza, proporcionalidade e benefício, sem esgotar o tema. Para garantir a transparência e a prestação de contas, cada entidade deve apresentar relatórios comprovando o rateio nos termos autorizados pela portaria.
Caso contrário, o risco é minar um dos traços distintivos do modelo das organizações sociais, que é justamente a capacidade das entidades de reduzir custos e, sobretudo, acompanhar e implementar inovações tecnológicas. Isso decorre da lógica de controle de resultados, que permite que a entidade exerça sua autonomia gerencial e financeira para definir os meios que serão utilizados para o atingimento das metas pactuadas, podendo adotar soluções criativas e inovadoras para atingir resultados mais satisfatórios aos beneficiários dos serviços.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro faculta que a edição de atos normativos seja precedida de consulta pública para manifestação de interessados (artigo 29 do Decreto-Lei nº 4.657/1942).
Assim, trata-se de uma excelente oportunidade para que a Secretaria de Saúde estabeleça um processo participativo que contemple a perspectiva tanto dos órgãos contratantes como das Organizações Sociais, diretamente afetadas pela regulamentação, de modo a assegurar a segurança jurídica do modelo e permitir inovações necessárias para maior eficiência na gestão da saúde pública estadual.
Notas
[1] TCE-SP, TC-016805.989.20-9, conselheiro Robson Marinho, 2ª Câmara, Sessão: 20/9/2022.
[2] TCE-SP, TC-005784.989.18-8, conselheiro Marco Aurélio Bertaiolli, 1ª Câmara, Sessão: 27/2/2024.
- Guilherme Amorim Campos da Silva
é sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr. Advogados, doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e professor da Fadisp.
- Raquel Grazzioli
é advogada do escritório Rubens Naves, Santos Jr. Advogados, responsável pela área de Terceiro Setor, coordenadora do Núcleo de Organizações Sociais da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB-SP.