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Privatizar a Sabesp é rumar contra a sustentabilidade
Experiência internacional mostra que prejuízos socioambientais com saneamento privatizado se agravam a longo prazo
(Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Hoje os gestores públicos responsáveis de todo o planeta se veem diante de um desafio urgente: colocar suas comunidades, sociedades e nações no rumo do desenvolvimento sustentável em face das mudanças climáticas e da crescente escassez de recursos naturais vitais – com destaque para a água.
No Brasil, esse desafio decisivo precisa ser combinado com a superação de um atraso histórico, que requer a provisão de água tratada e de coleta e tratamento de esgoto para todos. Em 2020, com o estabelecimento do Marco Legal do Saneamento, a nação firmou consigo mesma um compromisso, tardio e urgente, de universalizar o saneamento básico em pouco mais de uma década. Trata-se atender 15% dos brasileiros que hoje não recebem água e quase metade da população do país que ainda não conta com serviço de esgoto.
Estamos num momento marcado pela busca premente de um futuro sustentável, em que o país precisa acelerar a expansão do saneamento e ao mesmo tempo aperfeiçoar sua capacidade de planejar e gerir recursos para mitigar crescentes impactos climáticos. Nesse contexto, a trajetória, o modelo e os resultados e o compromisso público da Sabesp a habilitam a um protagonismo ainda maior. A empresa deveria estar sendo reconhecida como ativo precioso e exemplar, a ser fortalecido. Em vez disso, entretanto, interesses político-ideológicos e econômicos particulares a veem como meio de obtenção de ganhos de curto prazo.
A Sabesp é a maior empresa de saneamento do país, uma das maiores do mundo e referência internacional de qualidade. Atende cerca de 30 milhões de pessoas em 375 municípios paulistas, nos quais 98% dos habitantes contam com abastecimento de água e mais de 90% têm esgoto coletado, sendo 85% dos esgotos tratados. Lembrando que o compromisso nacional firmado no Marco Legal é levar água para 99% e coleta de esgoto para 90% da população do país até 2033.
Empresa de economia mista, já com 49,7% de suas ações em mãos de investidores privados, a Sabesp atualmente se sustenta num modelo institucional vocacionado para combinar dinamismo e eficiência com visão de longo prazo e fidelidade ao bem comum. Fórmula equilibrada e adequada para enfrentar simultaneamente os desafios da expansão de cobertura a médio prazo e da sustentabilidade ambiental e socioeconômica a longo prazo.
Universalizar é atender os mais pobres
As pessoas hoje desassistidas por esses serviços são, quase todas, pobres – sendo a falta de saneamento, e os problemas dela decorrentes, um dos fatores de manutenção dessas populações na pobreza. Um estudo da Associação das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon) recém-divulgado mostra que a população sem acesso à rede de esgoto equivale quase exatamente à metade mais pobre do país e é composta, majoritariamente, por pessoas com renda de até um salário-mínimo, sem ensino fundamental completo, pretas e pardas.
O grande desafio nacional do saneamento, portanto, é o de levar esses serviços básicos para as populações mais pobres, no prazo de uma década, de um modo sustentável em termos de arranjo tarifário e de gestão socioambiental. Não são metas triviais, a começar pela necessidade de vultosos aportes de capital (no total, cerca de R$ 1 trilhão, segundo estimativa feita em 2020 pela consultoria KPMG corrigida pela inflação dos últimos três anos).
Ao desafio de atração e alocação de investimentos públicos e privados, junta-se o do aprimoramento de modelos institucionais, contratuais, regulatórios e de parcerias efetivamente capazes de promover na rápida expansão de infraestrutura e serviços. Processo que demanda visão estratégica, para preservação ambiental, especialmente dos recursos hídricos, e viabilização de preços compatíveis com o poder de compra das populações atendidas, sobretudo para os atualmente desassistidos, que requerem tarifas subsidiadas.
Nas últimas décadas, passado o deslumbramento privatizante do final do século 20, países mais ricos e desenvolvidos vêm reconhecendo que a indústria do saneamento – prestadora de serviços públicos básicos de caráter naturalmente monopolista e que exerce papel fundamental no enfrentamento dos desafios climáticos e ambientais – não combina com modelos excessivamente dependentes da iniciativa privada. Tanto que, de acordo com o nas Instituto Transnacional (TNI), desde a virada do milênio houve mais de 300 processos de reestatização de serviços de saneamento mundo afora.
Evidências contradizem as promessas
Ao defender a privatização da Sabesp, o governo de estado de São Paulo, sob a liderança do governador Tarcísio de Freitas, se diz bem-informado sobre fracassos da privatização do saneamento em países como a França, a Alemanha e Reino Unido (os Estados Unidos não estão nessa lista porque lá, pátria maior do capitalismo contemporâneo, o saneamento é majoritariamente provido por operadores públicos). Mas assegura que aqui será diferente.
Em São Paulo, e com a Sabesp, será feito mais um experimento de privatização do saneamento em larga escala que promete somente benefícios para todos graças a um plano de desestatização impecável, que garantirá a prevalência do interesse público sobre a busca do maior lucro (como, evidentemente, também foi prometido pelos promotores da privatização nos países, regiões e municipalidades que hoje integram a onda internacional de reestatização).
O governo Tarcísio diz que os resultados da privatização da Sabesp serão muito diferentes e melhores que em lugares como Paris e Berlim, que reestatizaram o saneamento. Mas ao apresentar as vantagens de uma Sabesp privatizada, o governo paulista promete benefícios que viriam já nos próximos anos – como uma aceleração da universalização dos serviços e redução tarifária. O que a experiência internacional demonstra, entretanto, é que os prejuízos econômicos e socioambientais decorrentes da privatização do saneamento se avolumam e agravam entre o médio e o longo prazo. No caso paulista, esses prejuízos teriam enorme impacto negativo: o desmonte de um modelo bem-sucedido vocacionado para atender ao interesse público, impulsionado por parcerias com investidores e empreendimentos privados.
Tarcísio de Freitas está no início do seu primeiro mandato eletivo, e já à frente do maior estado brasileiro em termos de população e PIB. É uma rara oportunidade, que deve ser assumida juntamente com a responsabilidade de construção de um legado de desenvolvimento para a sociedade paulista e brasileira.
Ao priorizar a privatização da Sabesp, Tarcísio ameaça desconstruir uma das mais bem-sucedidas empresas brasileiras e dificultar a necessária gestão estratégica de recursos naturais cuja preservação demanda instituições e gestores norteados pelo interesse público. Trata-se de pôr em risco um legado que impactará várias gerações, trafegando na contramão do desenvolvimento sustentável.
O Tietê e a evolução das tarifas
Entre as promessas de benefícios que adviriam da privatização, o governo Tarcísio cita a despoluição do Tietê e redução de tarifas. São argumentos enganosos.
O atraso na despoluição do rio aconteceu não em razão de alguma deficiência do atual modelo da Sabesp, mas devido a disputas políticas com municípios relativas a questões tarifárias. Nos últimos anos, esses entraves foram equacionados e superados, permitindo que, agora, os processos de limpeza e revitalização do Tietê efetivamente avancem. A despoluição não requer privatização, e a ideia de que a primeira dependeria da segunda é uma tentativa de obter vantagem política escondendo a verdadeira razão do atraso ocorrido e distorcendo a realidade.
A promessa de redução de tarifas por meio de utilização de recursos obtidos no processo de privatização – uma redução, portanto, artificial e insustentável – é uma forma de responder, a curto e médio prazos, ao fato de que processos de privatização tendem a encarecer os preços para os consumidores a médio e longo prazos. Se vingar essa lógica, teremos benefício para a população durante alguns poucos anos, mas que serão revertidos em seguida, quando os interesses econômicos e políticos dos que apostam na privatização já estiverem atendidos.
Mas essa trajetória na contramão da sustentabilidade ainda pode ser evitada. Como empresa de economia mista com controle acionário do poder público, a Sabesp pode se expandir rapidamente, a curto e médio prazo, graças aos crescentes incentivos a Parcerias Público-Privadas (PPPs), favorecidas pelo Marco Legal e ampliadas por decreto presidencial de julho deste ano. E sob controle público, pode continuar garantindo uma gestão dos recursos hídricos, do meio ambiente e das políticas tarifárias que assegure sustentabilidade socioambiental para as próximas décadas e gerações.
Os paulistas têm nas mãos uma empresa de saneamento exemplar, talhada para superar os desafios de hoje cuidando também do futuro, capaz de assumir um papel estratégico para o país. Devemos defendê-la de uma privatização motivada por crenças ideológicas anacrônicas e de interesses políticos e econômicos de curto prazo.