PORTFÓLIO
Por que o uso de inteligência artificial não deve ser proibido nas eleições?
Por Luis Fernando Prado e Carolina Giovanini
O ano de 2024 será marcado pela realização de eleições que definirão, em outubro, os futuros prefeitos e vereadores dos municípios brasileiros. Como não poderia deixar de ser, o tema já está levantando debates, dentre os quais se destacam o combate à desinformação e a presença cada vez mais influente de sistemas de inteligência artificial (IA) no processo eleitoral. Em um contexto em que a disseminação de informações incorretas pode distorcer a percepção pública e comprometer a integridade do processo democrático, a reflexão sobre estratégias de combate à desinformação e uso ético da inteligência artificial se tornam elementos cruciais para a construção de um ambiente eleitoral transparente e confiável.
Nesse sentido, ressalta-se que, recentemente, o Fórum Econômico Mundial publicou o Relatório de Riscos Globais de 2024, o qual destaca o fenômeno de desinformação gerada por sistemas de inteligência artificial generativa, especialmente diante da proliferação de ferramentas que geram “conteúdo sintético”. Diante desse contexto, surgem propostas de banimento do uso da tecnologia de inteligência artificial nas eleições, sob o pretexto de mitigação de potenciais danos causados pela disseminação massiva de informações falsas.
Evidentemente, a interseção entre tecnologia e política levanta debates sobre a resiliência e integridade do sistema democrático, porém, é necessário questionar se o banimento do uso de sistemas de IA é – de fato – a solução mais adequada para lidar com os desafios emergentes. Nesse sentido, parece-nos que, em vez de se sustentar a proibição total, medida radical de difícil (senão impossível) controle, o momento é de oportunidade para se promover um debate construtivo sobre a aplicação ética e responsável da tecnologia em nossa sociedade.
Quando tratamos de IA nas eleições, pouco se fala que a tecnologia tem o potencial de trazer inovações positivas para a transparência eleitoral, facilitando processos, aprimorando análises de dados e, até mesmo, fornecendo ferramentas eficazes para a detecção de desinformação e democratizando campanhas eleitorais diante da diminuição de custos. Em vez de ser encarada exclusivamente como uma ameaça à integridade democrática, é importante que a IA também seja vista como uma tecnologia que pode trazer benefícios e aprimoramento ao processo eleitoral, de modo que uma política de proibição provavelmente envolveria custos de oportunidade significativos para a sociedade como um todo.
Além disso, é importante lembrar que a estratégia de permitir o uso de sistemas de IA no processo eleitoral em nada afasta a incidência das consequências civis e penais aos responsáveis pelos males causados à sociedade. A legislação já existente e aplicável ao contexto eleitoral segue sendo plenamente aplicável ao uso de sistemas de IA. A título de exemplificação, é possível citar que o Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965) já proíbe expressamente qualquer pessoa de divulgar, na propaganda eleitoral ou durante o período de campanha, fatos sabidamente inverídicos em relação a partidos políticos ou a candidatos, capazes de exercer influência perante o eleitorado, o que pode acontecer independentemente do uso de qualquer tecnologia.
Vale ressaltar que a minuta de Resolução sobre propaganda eleitoral, em discussão no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), prevê que a utilização de conteúdo fabricado ou manipulado, em parte ou integralmente, por meio do uso de tecnologias digitais para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade, ou sobrepor imagens ou sons, incluindo tecnologias de inteligência artificial, deve ser acompanhada de informação explícita e destacada de que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e qual tecnologia foi utilizada. Inclusive, o texto da proposta de Resolução veda somente o conteúdo fabricado ou manipulado de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados com potencial de causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral, inclusive na forma de impulsionamento, de modo que não há – nem deve haver – proibição ao uso de inteligência artificial em si.
No mais, vale destacar que o uso de IA para geração e impulsionamento de qualquer tipo de conteúdo digital é, atualmente, fato consumado e irreversível, uma vez que tecnologias de IA já se encontram integradas à imensa maioria das soluções de mercado existentes. Nesse sentido, afirmar que a IA deveria ser proibida no contexto eleitoral pode soar tão anacrônico quanto defender, por exemplo, a proibição do uso da internet. Tanto a IA como a internet são ferramentas que podem, sim, ser utilizadas para propósitos eleitorais ilícitos, o que, inclusive, acontece com a internet desde a sua popularização. No entanto, por irrazoável que seria, ninguém defende a proibição do uso de internet no meio eleitoral, assim como também soa no mínimo distópico pregar a proibição de uma tecnologia já tão difundida, banalizada e que não carrega em si uma finalidade intrinsecamente ilícita, como é a IA.
Portanto, diante das complexidades que envolvem a interseção entre tecnologia e política, a abordagem mais benéfica à sociedade não parece ser o banimento indiscriminado do uso de sistemas de IA. Pelo contrário, entendemos que uma alternativa mais equilibrada seria o direcionamento de esforços para a criação e implementação de diretrizes que norteiem o uso responsável e inevitável da tecnologia durante os processos eleitorais. Além disso, é importante investir em estratégias de fiscalização e monitoramento contra a desinformação para detectar e responsabilizar violações às regras já existentes no contexto eleitoral, independentemente do meio tecnológico utilizado pelos infratores.
O debate em torno do uso de sistemas de inteligência artificial nas eleições serve de alerta para que o medo do desconhecido não domine iniciativas regulatórias no campo do direito digital, onde sempre se pregou uma abordagem que reconheça os benefícios da inovação e trabalhe para mitigar potenciais riscos. Proibir seria ineficaz e aniquilaria importante oportunidade de utilizarmos o debate do momento para investirmos, enquanto sociedade, em padrões e controles que elevariam a barra quanto ao uso ético e responsável de IA.
Luis Fernando Prado
Sócio do escritório Prado Vidigal Advogados, especializado em novas tecnologias e proteção de dados
Carolina Giovanini
Advogada no escritório Prado Vidigal Advogados, especializada em novas tecnologias e proteção de dados