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Os seguros precisam de Lei

5 de abril, 2023

Ernesto TzirulnikSócio de Ernesto Tzirulnik – Advocacia, Presidente do IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro da OAB-SP, coordenador da equipe que se encarregou da elaboração e acompanhamento do PLC29/2017

O exame de qualquer contrato de seguro, do mais simples ao mais complexo e vultoso, não pode ignorar que os clausulados dos contratos são essencialmente escritos pelas seguradoras e suas resseguradoras. Diversos fatores impõem essa realidade que conduz o seguro, inexoravelmente, à classificação de contrato por adesão e consequente provoca sua sujeição ao princípio in dubio pro segurado, interpretando-se as dúvidas e obscuridades das apólices em favor dos aderentes – contra proferentem -, em conformidade com o artigo 423 do Código Civil brasileiro (CCB).

Vejamos alguns desses fatores. Em primeiro lugar, a adesão é consequência natural da empresarialidade do contrato. Como todos sabem, o parágrafo único do art. 757 do Código Civil exige que a parte prestadora da garantia no contrato de seguro seja uma sociedade seguradora legalmente autorizada a empreender a especial atividade de garantir interesses econômicos contra os riscos que os ameaçam. Todos podemos ser fiadores, transportadores, empreiteiros, mutuantes, locadores, sócios, arrendadores, depositários etc. Mas, não seguradores. Estes necessariamente devem se habilitar cumprindo requisitos de constituição, de solvência e operacionais os mais diversos, segundo o tipo de seguro, o volume das operações, as regiões territoriais em que se desenvolverão os negócios. Não há seguro isolado.

Qualquer seguradora deve celebrar o maior número de negócios e com a maior homogeneidade possível, de forma a arrecadar prêmios suficientes para garantir os interesses dos segurados, pagar as indenizações, quando há sinistros, custear a empresa e atribuir lucro aos seus acionistas. Essa característica da empresarialidade pressupõe operação suportada em outros contratos capazes de fornecer efetiva segurança a custos compatíveis. Se uma companhia operasse qualquer tipo de seguro utilizando apólices distintas, específicas para cada um dos segurados, ela jamais conseguiria empreender a comunhão necessária para a operabilidade da empresa seguradora. Por isso, impõe-se a utilização de condições contratuais gerais e especiais padronizadas – e até mesmo as chamadas condições particulares não costumam diferir umas das outras senão no que se refere a particularidades muito básicas de cada segurado. Por isso é que se diz que o contrato de seguro é contrato por adesão pela sua própria natureza.

Em segundo lugar, a adesão é característica imposta pelos garantidores da seguradora. A operação da seguradora é amparada por outro negócio que lhe proporciona solvência, o resseguro. As seguradoras se veem obrigadas a buscar a proteção de terceiros para a garantia da sua atividade empresarial por razões de solvência e imposições regulatórias, celebrando, com esses terceiros, tratados automáticos ou contratos individuais que trarão recursos financeiros para o cumprimento dos contratos de seguro que celebram com seus clientes, seja para que realmente forneçam aos segurados garantia efetiva, seja para que possam prestar as indenizações devidas, quando ocorrem os sinistros. Assim os capitais de uma rede de terceiros, os resseguradores e os retrocessionários, será trazida para permitir o cumprimento dos contratos de seguro.

As responsabilidades da devedora da garantia constituída por um contrato de seguro, a seguradora, terão o respaldo de capitais oriundos principalmente dos resseguradores de países como Reino Unido, Estados Unidos da América do Norte, Canadá, Alemanha, França, Irlanda, Itália, Japão e Suíça. Esses resseguradores organizam-se para operações que abrangem seguradoras e contratos de seguro espalhados pelo mundo. Para viabilizar tais operações internacionais, criam seus próprios padrões, procurando uniformizar os clausulados dos contratos de seguro celebrados pelas seguradoras a que garantem. Como, em geral, mais de um ressegurador garante concorrentemente a mesma seguradora, a padronização se torna ainda mais necessária. Assim, nos seguros de riscos de engenharia haverá as regras LEG – sigla da associação de resseguradores internacionais que formula os padrões das coberturas dos riscos de engenharia, a London Engineering Group. No D&O serão as Sides, e assim por diante.

Esses padrões oriundos do resseguro estão em todos os seguros, particularmente nos de grandes riscos. As seguradoras, por dependerem do resseguro, serão obrigadas a se ajustarem aos requisitos de subscrição (escolha do que segurar ou não), de contrato (o que cobrir ou não, e como cobrir) e de regulação de sinistro (interpretação e aplicação) predeterminados pelos chamados mercados resseguradores. Dessa forma, os conteúdos das apólices não são livres, ainda que algum governante tenha tentado gritar o contrário (Resolução CNSP 407/2021, art. 4º). Serão padrões essencialmente determinados por terceiros estranhos aos estipulantes e segurados, apenas vinculados às seguradoras que, por sua vez, se veem constrangidas a repassá-los aos seus segurados. O fenômeno é especialmente intenso no mercado brasileiro onde a própria direção das regulações dos sinistros, a escolha de reguladores e peritos, e até mesmo dos advogados, são determinadas pelos resseguradores que se reúnem nos Comitês de Direção (Steering Committees).

Um terceiro fator é a especialidade técnica do seguro.  A desigualdade existente entre os seguradores e os segurados, por mais economicamente fortes que estes possam ser, é patente no que toca à produção e ao entendimento dos conteúdos contratuais.

A redação dos textos contratuais (proposta, apólice, questionários para declaração de risco etc.) requer a atuação de profissionais altamente especializados. Os segurados não são profissionais do seguro. Alguns se esforçam para melhor acompanhar os seguros, mas isso não significa pegar na caneta das seguradoras. Quem ostenta essa condição são as companhias seguradoras, mais do que essas os seus resseguradores e o elenco de prestadores de serviços que intervêm na cadeia entre a subscrição e os pagamentos pelos sinistros.

Na síntese de Rubén Stiglitz “el asegurador ejercita con habitualidad (profesionalidad) su industria, por lo que ha podido ‘meditar y ensayar todas las cláusulas de los documentos que emite y debe culpársele de la adopción de fórmulas equívocas.'” [1]

A supremacia das seguradoras na redação das apólices de seguros de riscos de engenharia é oportunamente reconhecida no artigo intitulado Seguros de Riscos de Engenharia no Brasil: características gerais e histórico, de autoria de um dos nossos mais notórios e experientes dirigentes técnicos de seguradora e resseguradora, recentemente publicado em obra coletiva de executivos e técnicos vinculados a seguradoras e resseguradores. Para eliminar os preconceitos dos juristas apegados a classificações contratuais abstratas é importante prestar muita atenção nesse reconhecimento:

Em abril de 2009, a Munich Re do Brasil Resseguradora S.A. divulgou para as seguradoras com as quais ela mantinha contratos de resseguro, o clausulado de seguros de riscos de engenharia – versão 04.2009, para ser utilizado por elas, de forma referencial. Este clausulado é praticamente o mesmo contido na Circular Sereg-2.048/2007 (nota 10), com pequenas alterações na formatação e inclusão de novas cláusulas. [nota 10 “Em março de 2006, a Munich ReBrasil, Scor, Transatlantic, XL Re, AIU, Swiss Re, Converium, IRB-Brasil Re e a Fenaseg (atual CNSeg e FenSeg) contrataram as empresas Braga & Associados – Consultoria de Riscos Ltda. e a Cooper Brothers Serviços Técnicos em Seguros Ltda. Para realizarem a atualização dos clausulados do ramo riscos de engenharia do IRB-Brasil Re. O resultado do trabalho foi objeto de revisão pelo período de aproximadamente um ano, pelos representantes de todas as empresas indicadas, sob a coordenação da Munich Re Brasil. Este trabalho originou a Carta Serege-2428/2007, do |IRB-Brasil Re.”] [2]

Como se vê desse reconhecimento público, os documentos impostos ao mercado – o IRB era monopolista do resseguro – são invariavelmente ditados pelos resseguradores internacionais que operam mundialmente.

A regra de interpretação do art. 423 no caso de dúvidas resultantes dos contratos de seguro é inafastável, não sendo possível admitir que clausulados predispostos possam criar regras de interpretação contrárias à resultante da lei.

Notas

[1] Derecho de Seguros, Tomo II, 5ª. Ed. Buenos Aires: La Ley, 2008, p. 73.

[2] ZOPPA, Carlos Roberto de. Seguros de Riscos de Engenharia no Brasil, características gerais e histórico in Seguros de Riscos de Engenharia no Brasil (coord. POLIDO, Walter). Roncarati: São Paulo, 2021, p. 33.

https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/os-seguros-precisam-de-lei/

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