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O dilema do crédito relativo ao imposto não pago no IBS

21 de junho, 2023

Diante desse cenário complexo (e perigoso), proponho a aplicação do bom e velho diferimento


CARLOS EDUARDO DE A. NAVARRO

(Crédito imagem: Pixabay)

Sabemos que um dos principais (senão o principal) contencioso em torno do ICMS tem a ver com os chamados créditos de fornecedores inidôneos. Nos países que adotam o IVA, é vasta a literatura acerca da chamada fraude carrossel. 

Isso, obviamente, é motivo de preocupação por parte dos policy makers brasileiros, no contexto da reforma tributária (PECs 45 e 110). Tanto que, por algum tempo, dois modelos foram discutidos no Congresso Nacional: o primeiro vinculava o crédito ao pagamento; já o segundo reconhece que o crédito deve ser calculado com base no imposto destacado no documento fiscal (independentemente do seu pagamento), mas sempre tentando buscar soluções para mitigar o problema, dentre as quais destaco o chamado split payment. 

Com o advento do relatório do Grupo de Trabalho da Reforma Tributária, está claro que a decisão foi pelo segundo modelo: 

“Por fim, o Grupo de Trabalho traz recomendação sobre o requisito para que haja o reconhecimento do crédito do IBS pelo adquirente, indicando que se deve garantir o direito à dedução do valor cobrado anteriormente independentemente da comprovação do efetivo pagamento do imposto pelo fornecedor. Condicionar o creditamento ao recolhimento do tributo incidente nas operações anteriores seria mais apropriado caso se implementasse, em conjunto com o IBS, um instrumento que, no momento do pagamento, separasse e enviasse para o Fisco o valor do imposto devido de modo automático. Com essa metodologia, o adquirente conseguiria se certificar de que o tributo foi recolhido. Como ainda não se pode asseverar que tal técnica será efetivada de imediato, a recomendação é que se conceda o creditamento quando o imposto estiver destacado na nota fiscal, deixando a exigência de comprovação de recolhimento como alternativa para ser implementada no futuro próximo, nos termos da lei complementar, onde já se preveja, por exemplo, o split payment” [1]. 

Juridicamente, a solução adotada é a melhor. Quanto a isso, não há dúvidas. Mas não podemos ignorar que, a depender do tamanho do tax gap [2], o crédito do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) não pago inexoravelmente pode levar a um aumento de alíquota para os bons contribuintes (pela simples lógica de que, se todos pagam, todos pagam menos; mas se alguns não pagam, quem paga acabará pagando mais). 

Além do risco para a arrecadação, o modelo escolhido também exigirá mais gasto público em fiscalização. Seja para criar e operacionalizar o split payment, seja para integrar as administrações tributárias de diferentes localidades. 

Diante desse cenário complexo (e perigoso), proponho uma solução simples (e antiga): a aplicação do bom e velho diferimento para o IBS. O diferimento nada mais é que a mudança do sujeito ativo do tributo, do contribuinte para um responsável que está adiante na cadeia (como o substituído está atrás, o diferimento também é conhecido por substituição tributária para trás). 

Basicamente, o mecanismo aqui sugerido é o seguinte: o fornecedor, contribuinte do IBS, destaca o imposto no documento fiscal, mas não o recolhe (destaque para mero controle); quem irá recolher é o adquirente, por ocasião da entrada (recebimento do bem, serviço ou intangível). Se (e quando) recolher, o adquirente poderá se apropriar do crédito; caso não o faça (ou enquanto não o fizer), não haverá crédito do IBS. 

O diferimento aqui proposto pode (e deve) ser aplicado em todo o tipo de transação realizada no território nacional (intramunicipal, intermunicipal ou interestadual) e pode trazer inúmeras vantagens (inclusive quando comparado ao split payment [3]). 

Em primeiro lugar, como adiantado acima, alcança o mesmo efeito econômico do crédito vinculado ao pagamento, mas sem as discussões jurídicas relacionadas a esse modelo, tais como boa-fé do adquirente, impossibilidade de se conhecer/controlar a escrita fiscal de terceiros, guias de pagamento adulteradas etc. Assim, se o destinatário recolhe o imposto, toma o crédito; se não recolhe, não toma; se parcela, toma o crédito de maneira parcelada; se paga em data posterior ao vencimento, toma o crédito do principal (não da multa e juros). 

Além disso, o diferimento permite que se faça escolhas diferentes para situações diferentes. Ainda que a regra possa ser o diferimento, é possível estabelecer todas as situações em que ele não ocorrerá (e que, portanto, o imposto será pago pelo fornecedor), de acordo com a conveniência de fiscalização, como, por exemplo, as vendas a consumidores finais (não contribuintes do IBS), as vendas para empresas optantes pelo Simples Nacional (que, por não se creditarem, poderiam não ter interesse no recolhimento), as vendas realizadas por empresas públicas e sociedades de economia mista, vendas realizadas por empresas sediadas na Zona Franca de Manaus, dentre outras. 

Da perspectiva da relação fisco-pagador de tributos, o diferimento também é mais vantajoso, pelas seguintes razões: 

a) Recolhimento do imposto pelo destinatário fortalece o princípio do destino: pensemos numa agroindústria localizada no município de Cascavel: ela terá de conhecer apenas as legislações e alíquotas de sua localidade (município e estado) e ficará responsável por pagar o IBS sobre 100% dos bens e serviços que adquirir, integralmente para o estado do Paraná e município de Cascavel (ou seja, os remetentes, localizados em diversos outros municípios do País não precisarão pagar qualquer tributo para Cascavel) [4];

b) Negociações em torno do imposto não pago no vencimento: caso o imposto não seja pago no vencimento, a agroindústria acima referida poderá negociar o pagamento junto às autoridades de sua localidade (ou seja, um remetente do Rio de Janeiro não precisará procurar autoridades paranaenses para conhecer as condições de parcelamento ou transação daquela cidade); e

c) Cobrança do imposto não pago no vencimento: o imposto não pago pela mesma agroindústria de Cascavel será cobrado, em Cascavel, e pelas procuradorias (municipal e estadual) locais [5].

Como se pode notar, a adoção do diferimento poderia ajudar tanto os entes tributantes quanto os contribuintes, além de ser um mecanismo bastante conhecido pela doutrina e pela jurisprudência. Se é verdade que tributo bom é tributo velho, é de se crer que tanto as resistências quanto as discussões jurídicas em torno do diferimento tendem a ser muito menores que no novel split payment [6].


[1] Página 77 do documento disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2285113. 

[2] E penso que ele tende a ser maior que o verificado hoje pelo simples motivo de que teremos mais empresas interessadas no crédito. Hoje, prestadores de serviços (que pagam ISS) e empresas sujeitas ao regime cumulativo de PIS/Cofins não se creditam de tais tributos. 

[3] Embora a ideia seja boa, o fato é que o split payment tem aplicação muito limitada. Não apenas se mostra imprestável para transações em papel moeda como, mesmo nas transações bancárias ou via cartões, existe a possibilidade de o tributo vencer antes da liquidação financeira (pensemos em uma compra com prazo de pagamento de 90 dias ou mesmo numa compra parcelada). 

[4] Essa, aliás, é uma das grandes críticas das empresas de venda não presencial após a Emenda Constitucional (EC) 87/2015. Ao terem de conhecer as legislações de todos os estados destinatários (e são apenas 27, se comparados com o potencial problema em mais de 5.000 municípios), o ICMS se tornou muito mais complexo que antes da EC. 

[5] Evitando que empresas inadimplentes tenham de administrar processos nas mais diversas comarcas do país. 

[6] Com isso, talvez o split payment pudesse se limitar às operações realizadas por varejistas. 

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