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Mais de cem robôs já atuam na Justiça brasileira. Entenda os modelos de IA e saiba o que eles fazem nos processos

10 de outubro, 2023

Por Pollyanna Brêtas
— Rio de Janeiro

(Imagem de rawpixel.com no Freepik)

Victor, Expedito, Rafa, Poti, Athos, Clara, Bem-Te-Vi, VictorIA. Estes são alguns dos novos funcionários do Judiciário brasileiro. Apesar dos nomes criativos, todos eles são modelos de Inteligência Artificial que estão sendo desenvolvidos para agilizar a tramitação dos processos, reduzindo custos e tempo. Hoje mais de são robôs já atuam sistematicamente na Justiça brasileira.

Os dados dão a dimensão do desafio: em 2022, havia cem milhões de processos no Judiciário brasileiro e 17 mil juízes. Isso significa que cada juiz precisaria analisar seis mil demandas por ano, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Além disso, muitos processos, quando chegam a instâncias superiores, por exemplo, têm mais de mil páginas. Por isso, usar máquinas pode ser uma das soluções para mitigar a lentidão.

Nos Tribunais, os robôs já executam tarefas de rotina, conseguem identificar e agrupar temas de processos, fazem atividades da rotina cartorária dos gabinetes, sugerem andamentos e próximos passos para que as ações andem mais rápido. A Inteligência Artificial (IA) identifica e lida com demandas padronizadas, como revisar rapidamente pedidos de alvarás de soltura.

Os robôs também são treinados para comparar processos com outras ações que já tiveram decisões ou desfechos em outros Tribunais. Eles localizam casos semelhantes para ajudar magistrados a fundamentar decisões em precedentes relevantes. Um levantamento feito pelo CNJ identificou 111 projetos de Inteligência Artificial desenvolvidos em 53 Tribunais em todo o país em 2022.

— A ideia é que a IA no Judiciário seja uma tecnologia de apoio, uma inteligência humana aumentada. Ela não é uma tecnologia substitutiva. Essa é uma restrição clara: todo processo de tomada de decisão ter que estar sob controle de um usuário — ressalta João Thiago de França Guerra, juiz auxiliar da Presidência do CNJ.

Para pesquisadores, além de dar agilidade, a IA pode melhorar a qualidade da Justiça e uniformizar as decisões dos Tribunais.

— Os robôs são utilizados nas análises de documentos jurídicos, triagem de processos, petições, considerando grande volume de ações. No âmbito de decisões judiciais, podem atuar levantando precedentes, comparando decisões similares. Com isso, esperamos redução do tempo em tarefas administrativas, e melhoria na qualidade das decisões judiciais, já que elas passam a ser amparadas em pesquisas mais robustas — explica Carolina Giovanini, advogada especialista em Direito Digital, do escritório Prado Vidigal Advogados e pesquisadora no Núcleo em Pessoa, Inovação e Direito da Universidade Federal do Juiz de Fora.

Pesquisador da Universidade Federal de Brasília que atuou no desenvolvimento do primeiro robô da Justiça brasileira — o Victor, no Supremo Tribunal Federal —, o professor de Engenharia de Software Fabrício Braz avalia que a IA já é uma realidade:

— Espero ter com mais precisão nos novos modelos robôs que assumam atividades burocráticas, dando mais tempo ao magistrado para se dedicar a questões complexas.

Temas sensíveis

Embora a utilização da Inteligência Artificial seja analisada como um caminho sem volta, há preocupações sobre seus usos, aplicações e limites. Resoluções do CNJ, segundo especialistas, buscam impor limites e conferir transparência. Uma delas define que as máquinas não podem dar decisões em processos judiciais ou sugerir dosimetria de penas, por exemplo, no caso de processos criminais.

Algumas áreas mais sensíveis do Direito ainda são um desafio para a aplicação da Inteligência Artificial. Há um cuidado redobrado no caso de processos criminais, aqueles que envolvem direito de família e proteção à criança e ao adolescente.

— Todos os nossos projetos de IA no Judiciário, a gente se afasta de processos sigilosos e de natureza criminal. Também não abordamos aqueles com questão de família e de proteção de criança e adolescente porque são áreas sensíveis, e existe um receio — ressalta o professor de Engenharia de Software Fabrício Braz.

A área trabalhista também está executando modelos de IA. Segundo Bráulio Gabriel Gusmão, juiz do Conselho Superior da Justiça do Trabalho , um projeto inclui o tratamento de temas sensíveis, como trabalho infantil, assédio sexual, trabalho análogo à escravidão e o contrato de aprendizagem.

— Estamos aperfeiçoando o Gemini, sobre o Trabalho Decente, primeiro identifica, analisa todas as decisões que a Justiça do Trabalho proferiu que falavam sobre esse tema, lê decisões. O próximo passo é começar a ler as petições iniciais e vai alertar e sinalizar para o juiz que o processo tem aquele valor social e que precisa ser dada preferência e atenção — explica.

Casos devem ter tratamento diferenciado

De acordo com Sávio Andrade, advogado da área de Contencioso do escritório Machado Meyer, embora os dados sobre atuação de Inteligência Artificial na Justiça ainda não estejam consolidados, há relatos em Tribunais superiores do país que conseguiram julgar processos em blocos, agrupando as ações de acordo com o tema, em que houve queda de 60% no tempo de trâmite dessas ações.

A preocupação, segundo o advogado, é conseguir aplicar fatores que diferenciem processos que parecem semelhantes, mas não são e, por isso, não podem estar agrupados.

— O fator preocupante nos casos de princípios de precedentes, temas repetitivos, súmulas vinculantes é distinguir decisões que podem parecer semelhantes mas não são. Casos diferentes serão vistos como casos diferentes, tem que ter um mecanismo que assegure isso — observa Andrade.

O advogado lembra ainda que em outros países, como nos Estados Unidos, a Inteligência Artificial já está sendo adotada há mais de oito anos para a tomada de decisões de juízes e para recomendar dosimetria de penas em processos criminais. O fato já rendeu questionamentos sobre a fórmula do algoritmo por reproduzir preconceitos sociais.

João Thiago Guerra — Foto: Divulgação
João Thiago Guerra — Foto: Divulgação

Entrevista: ‘Ninguém vai receber decisão de robô’, diz João Thiago de França Guerra, juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

Como o Conselho Nacional de Justiça atua na regulação da Inteligência Artificial?

Para que seja garantida a transparência e auditabilidade dos modelos de IA, o CNJ emite resoluções para nortear a utilização das máquinas no Judiciário, e até para que os usuários do Judiciário saibam e entendam sua utilização. Queremos ter transparência sobre como ela funciona, quais são os limites, uso ético e responsável da Inteligência Artificial.

E quais são os limites?

Nenhum usuário vai receber decisão sobre seu processo judicial de um robô no judiciário brasileiro. As decisões vão ter sempre alguém revisando. É o conceito de inteligência humana aumentada. Isso diminui muito a preocupação quanto aos danos que ela (Inteligência Artificial) pode causar. A IA pode sugerir uma atividade, mas nunca decidir uma atividade sozinha. O segundo ponto é a transparência. Todos os modelos em uso têm que estar depositados no CNJ. Essa é a primeira camada de transparência: o usuário pode saber se o tribunal que ele tem o processo usa alguma forma de inteligência artificial.

Os modelos de IA são baseados em dados, e muitas vezes dados sociais, dependendo do tratamento, podem criar distorções no momento de categorizar temas, sugerir andamentos, entre outras atividades. Como minimizar esse risco?

Nos Estados Unidos, eles empregaram um modelo condenatório de pessoas negras, e a Inteligência Artificial repetiu comportamentos sociais discriminatórios. É preciso tentar buscar um reequilíbrio dessa equação. Temos que introduzir pontos de controle que procurem suavizar a discriminação algorítmica nos dados. Eles precisam ser monitorado e permanentemente controlados, com auditabilidade dos modelos.

Conheça alguns dos robôs da Justiça

Victor – STF

O Victor é um robô em operação desde 2017 no Supremo Tribunal Federal para análise de temas de repercussão geral na triagem de recursos recebidos de todo país. O Victor surgiu pela necessidade de agilidade nos procedimentos do STF diante do cenário de congestionamento de processos do STF, que anualmente recebe cerca de 70 mil novos processos e aproximadamente 350 novos processos por dia para serem analisados e julgados. Agora, o STF lançou a VictorIA, como mais novo robô da Corte.

Rafa -STF

A Rafa foi criada em 2022 para cumprir o compromisso de humanização dos processos com foco na agenda 2030 da ONU. A agenda 2030 é um plano global, com 17 objetivos de desenvolvimento sustentável. Os compromissos assumidos pelos países com a Agenda 2030 envolvem adoção de medidas para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsabilidade das instituições políticas. A ferramenta possibilita identificar e padronizar a classificação dos processos.

Athos (STJ)

Athos é um robô implementado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), desde 2019. Ele identifica documentos escritos de formas diferentes, mas que tratam do mesmo assunto. O Athos também permite identificar discussões recorrentes com potencial de serem definidas por meios repetitivos.

Poti – TJ RN

Poti atua promovendo de forma automática a penhora online de valores nas contas bancárias, principalmente em processos de execução fiscal. Poti tem a capacidade de efetuar um bloqueio a cada 35 segundos. Um servidor humano, em média, leva um mês inteiro para realizar 300 bloqueios. O robô ainda tem a função de atualizar o valor da ação de execução fiscal e transferir a quantia bloqueada para as contas oficiais indicadas no processo.

Clara – Tribunal Federal do Rio Grande do Norte:

O projeto tem como objetivo a automação da “elaboração de despacho inicial para citação dos executados por alguma dívida com a União e a elaboração de requisições de pequeno valor”. A Clara é responsável por ler documentos, recomendar tarefas e sugerir decisões, entretanto, essas decisões serão analisadas por um servidor.

Expedito – TJPE:

O Expedito atua na fase final de processos criminais. Quando um processo criminal chega a sua fase final (após o julgamento), para que seja de fato concluído (arquivado), é preciso que alguém dê andamento a vários procedimentos burocráticos. Segundo o TJPE, atualmente, cerca de 41 mil processos sentenciados (com trânsito em julgado) que ainda não foram definitivamente arquivados porque precisam desta etapa final. O robô enviará comunicações à Justiça Eleitoral quanto à suspensão e restabelecimento de direitos políticos; determinará a destruição de drogas; destinará armas ao Comando do Exército; enviará comunicações cartorárias e bancárias de destinação de bens e ativos oriundos da atividade criminosa.

Bem-Te-Vi – TST

O robô atua no Tribunal Superior do Trabalho (TST). A ferramenta conta com diversos filtros que permitem saber, por exemplo, quantos processos estão relacionados a determinado tema ou há quanto tempo deram entrada no gabinete.

Luzia

Luzia é primeira advogada robô do Brasil que surgiu de uma parceria entre a Legal Labs e a Procuradoria do Distrito Federal, para trabalhar nos 393 mil processos de execução judicial em trâmite na capital do país. A fase de execução é justamente na qual se concentra o maior tempo de tramitação dos processos.

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