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Inclusão de profissionais trans avança, mas é preciso criar ambiente de trabalho inclusivo

15 de fevereiro, 2023

Por Suzana Liskauskas; Especial Para O Prática ESG — São Paulo

(Foto: Turma do programa de capacitação da Alpa TRANSforma, promovido pela Alpargatas, na Paraíba: 90 pessoas trans já fizeram o curso Regal/Divulgação)

Das aulas de crochê com a bisavó até a criação da Arte Imaginativa, empresa que comercializa na internet receitas de amigurumi (técnica japonesa para a criação de bonecos de crochê e tricô), Kai Lopes teve que dar muitas laçadas na vida. Mas os pontos mais difíceis não foram feitos com agulhas. Lopes é uma pessoa preta, trans não-binária, tem 26 anos, é estudante do curso de pedagogia, intérprete de Libras e microempresário. Seu trabalho na Arte Imaginativa tem como principal objetivo a valorização da diversidade e a representatividade.

Criador do primeiro canal no YouTube especializado em amigurumis e acessível em Libras, também chamado de Arte Imaginativa, Lopes é a expressão da diversidade de carreira. Apesar do currículo que o qualifica para diversas oportunidades, ele prefere trabalhar como freelancer, por receio de não ser respeitado em processos seletivos.

— Nesses processos, as barreiras começam no primeiro contato. Geralmente, os formulários não têm espaço para o nome social ou para especificar o pronome e gênero com os quais a pessoa se identifica.

Em 2022, a partir da participação no projeto de empreendedorismo do Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável (CIEDS), Lopes pôde expandir sua empresa.

— Quando ingressei no projeto, não tinha mudado de nome e fiquei muito apreensivo sobre como as pessoas reagiriam quando eu falasse sobre a mudança do nome. Tinha receio de me ver nesse lugar de discriminação. Mas eles me acolheram e imediatamente mudaram a forma de me chamar. Tornaram possível que eu concluísse o curso, apesar de eu trabalhar fora e ter um filho — relata.

Fabio Muller, diretor Executivo do CIEDS, observa que a perspectiva de não respeitar a diversidade deriva de uma monocultura. Muller afirma que é preciso se libertar disso e entender o outro para deixar a ética emergir, promovendo a diversidade de fato.

Flexibilização de critérios

A empregabilidade de pessoa trans, que inclui travestis, transgêneros e pessoas não-binárias, é um tema muito novo para o universo corporativo, afirma Reinaldo Bulgarelli, secretário Executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+. Mesmo em empresas engajadas com diversidade, equidade e inclusão, onde deveria ser mais fácil garantir progressão de carreira, a contratação de pessoas trans enfrenta muitas barreiras.

Giowana Cambrone, mulher trans, de 42 anos, professora de Direito e consultora de Diversidade e Inclusão para a Yduqs, percebe avanço na postura das empresas. Ela destaca que os programas de diversidade e inclusão têm avançado na oferta de vagas. Porém, para além dos processos de seleção, Giowana ressalta ser preciso construir um ambiente de trabalho seguro, respeitoso e acolhedor.

— Poucos avanços veremos se as contratações não forem acompanhadas pela construção de um ambiente de fato inclusivo. Com flexibilização dos critérios tradicionais de contratação, disponibilização de oportunidades, ações afirmativas com foco em qualificação e desenvolvimento.

Lucas Bulgarelli, diretor executivo do Instituto Matizes, alerta que, quando a pessoa trans consegue ser admitida, é preciso pensar se a empresa está preparada para receber esse profissional, se haverá progressão na carreira.

— A pessoa trans pode estar empregada e não progredir na carreira. Isso também é uma forma de discriminação, não institucionalizada.

Trabalhar em um ambiente inclusivo é muito importante para 71% das pessoas trans que participaram de pesquisa feita pelo Great Place To Work. A maioria (54%) já presenciou, com alguma frequência (de pouco a muito), piadas e comentários envolvendo gêneros, orientações sexuais e raças/etnias nas empresas. Feita em 2022, a pesquisa teve participação de 24 empresas e 14.042 pessoas.

Noah Henrick, de 20 anos, é um homem trans que vivencia o ambiente inclusivo no trabalho desde 2021, quando foi contratado pela Sodexo On-site, em São Paulo, como jovem aprendiz. Hoje, é auxiliar administrativo. Além do ambiente acolhedor e o respeito ao ser tratado pelo pronome “ele”, Henrick valoriza o contato com outras pessoas trans,

— Só conheci outras pessoas trans depois que comecei a trabalhar presencialmente. É incrível ver que elas podem ocupar esses espaços e ter visibilidade — diz.

Programa de qualificação

Lilian Rauld, líder de Diversidade, Equidade & Inclusão da Sodexo On-site, conta que a empresa tem hoje cerca de 60 funcionários que são homens ou mulheres trans.

Thomas Nader, homem trans e líder da área de Recursos Humanos e parte do grupo de afinidade LGBTQIA+ do Mercado Livre no Brasil, é um dos protagonistas da campanha desenvolvida pela plataforma com a Casa 1, lançada no fim de janeiro com o mote ‘A Moda TRANSforma’. Entre os cerca de 15 mil funcionários, a empresa tem 46 autodeclarados pessoas trans, sendo nove em cargos de liderança.

A jornada para garantir um lugar no mercado de trabalho precisa incluir a qualificação. Na Paraíba, a Alpargatas apoia, desde 2021, o programa Alpa TRANSforma, com o objetivo de capacitar pessoas trans para atuarem na indústria de calçados. Atualmente, a empresa tem 30 colaboradores que concluíram a qualificação. Eles podem optar por seus nomes sociais em crachás e e-mails.

Em parceria com a Alicerce Educação, empresa de impacto social, o programa oferece cursos com duração de três meses. Os alunos recebem bolsa mensal de R$ 210.Até o momento, 90 pessoas trans foram capacitadas.

— Queremos criar futuros possíveis, ampliando possibilidades de empregabilidade de pessoas trans por meio da educação — diz Zezé De Matini, diretora de Sustentabilidade e Reputação da Alpargatas.

No Rio, o Senac e a Secretaria Municipal de Governo e Integridade Pública criaram o programa Diversidade Qualificada, que oferece cursos gratuitos de capacitação para pessoas LGBTQIA+. Até o momento foram certificadas 11 pessoas trans.

Discriminação é levada aos tribunais

Promover um letramento para que a identidade de gênero do transexual seja garantida e respeitada é imprescindível no ambiente de trabalho. Uma das garantias mais básicas, nesse caso, está relacionada à utilização do nome social que o empregado escolher.

— Nas relações profissionais, os empregadores devem se atentar para que toda a documentação relacionada ao empregado transexual observe o nome social escolhido por ele. Alguns exemplos são o contrato de trabalho e a assinatura de e-mail — diz Gabriela Dell Agnolo de Carvalho, advogada especialista em Direito do Trabalho do PSG Advogados.

Segundo André Issa, advogado trabalhista do Mandaliti, se a empresa impedir a adoção do nome social, ela pode ser responsabilizada por danos morais.

Quando o funcionário adota um nome social, mas ainda não conseguiu concluir a alteração do prenome no registro civil, a recomendação dos especialistas em direito trabalhista é que a empresa continue declarando esse funcionário com o nome de nascimento para fins do eSocial.

Issa observa que esse procedimento também deve ser feito em declarações para os órgãs governamentais.

—Mas no dia a dia o nome social deve estar no crachá, comunicações internas e e-mails. Isso garante conforto para o funcionário —afirma.

Bruno Minoru Okajima, sócio do escritório Autuori Burmann Sociedade de Advogados, explica que “a alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil, pela pessoa que se identifica com outro gênero que não aquele que lhe foi designado ao nascer, está assegurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”. Hoje o pedido de alteração pode ser feito diretamente nos cartórios, sem a necessidade de decisão judicial.

Casos de justiça

As empresas que contratam pessoas trans também devem oferecer instalações inclusivas. Gabriela Carvalho diz que cabe aos empregadores assegurar que os empregados transexuais possam usar instalações sanitárias adequadas, sem que eles sofram constrangimentos:

— Caso a empresa não possua instalações sem gênero definido, deve garantir o direito ao empregado de utilizar o banheiro com o gênero que ele se identifica.

A advogada cita algumas situações que a Justiça entendeu como discriminação passível de indenização por dano moral. Entre elas está o desrespeito à identidade de gênero da empregada transexual, quando lhe foi dito que “ele era homem e que tinha mais força”. Em outro caso ficou evidenciado que era exigido de uma empregada transexual que utilizasse o banheiro masculino.

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