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Divergências entre STF e TST em relação à pejotização
Há alguns meses, com alguma recorrência, estão sendo veiculadas notícias, decorrentes de acórdãos ou decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em sua maioria, reformam decisões de ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ou dos desembargadores dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) que reconhecem a relação de emprego dos trabalhadores contratados através de pessoas jurídicas — o que se acostumou denominar de “pejotização”.
Cabe destacar que o STF tem posição firme no sentido de reconhecer a validade constitucional de terceirizações ou outra forma de relação de trabalho, em observância ao que foi decidido no julgamento da ADPF nº 324/DF, ADC nº 48, ADI nº 3.961 e ADI nº 5.625.
Ao julgar a ADPF 324 e processos correlatos, o STF afastou a presunção da fraude pela terceirização, todavia, ressaltou que, seu “exercício abusivo” acabaria por violar a dignidade do trabalhador.
Mas a quem compete colher a prova da eventual fraude ou licitude da contratação, seja via terceirização ou pejotização?
Como regra geral, cabe à Justiça do Trabalho, diante do princípio da primazia da realidade sobre a forma, reconhecer os elementos fáticos que denotam a relação de emprego. Exemplifico: caso a Justiça especializada reconheça a presença de fraude numa relação de trabalho, a reclamação constitucional não deveria ser a via adequada para valoração de fatos e provas, tampouco para a aplicação de paradigmas em situações em que não se verifiquem de plano a estrita aderência que permitiria o conhecimento das reclamações constitucionais.
Conforme o magistério do ministro Alexandre Agra Belmonte, in Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 63, n. 95, p. 75-91, jan./jun. 2017, a reclamação é um remédio constitucional de natureza mandamental que objetiva preservar a competência e autoridade das decisões do STF e dos tribunais, inclusive para efeito de segurança do jurisdicionado e estabilidade das decisões.
Ocorre que esta medida extrema, a reclamação constitucional, tem que respeitar, naturalmente, critérios. Entre eles, a aderência é sumamente relevante.
O ministro Edson Fachin, na Reclamação nº 42.050 destaca que a “Corte exige, como pressuposto de cognoscibilidade, aderência estrita entre a decisão reclamada e o paradigma invocado, sob pena de conferir-se contorno recursal à via reclamatória, providência fortemente inadmitida por este Tribunal”.
Ou seja, o processo que está sendo objeto de discussão deve estar intimamente conectado, correlacionado, trazer os mesmos fatos, para que possa, então, ter avaliado o seu mérito. Em outras palavras, para que se permita a pejotização, por exemplo, de médicos ou qualquer outro profissional liberal, é imprescindível que nas instâncias ordinárias não tenha sido provado que houve fraude, ou que não estivessem presentes os quatro principais requisitos da relação empregatícia, a saber: onerosidade, pessoalidade, habitualidade e subordinação.
A avaliação de estrita aderência é muito importante para o conhecimento de uma reclamação constitucional ou não. E, neste sentido, nos autos da Rcl 55.806 AgR, sob a relatoria do ministro Edson Fachin, da 2ª Turma, julgado em 25/4/2023, pontuou-se que:
“Contrato de Parceria. Pejotização. Fraude. Art. 9º DA CLT. Reconhecimento de Vínculo Empregatício. ADPF 324, ADC 48, ADI 5625 E RE 958252. Ausência de Aderência Estrita. Inviabilidade da Reclamação. Agravo Regimental Desprovido. 1. Depreende-se dos autos que a pejotização da obreira se deu com o intento de fraudar a legislação trabalhista e que a nulidade do contrato de parceria foi declarada nos termos do art. 9º da CLT. Logo, a matéria debatida no processo de origem não guarda a identidade material com aquelas objeto dos paradigmas invocados, o que torna inadmissível a reclamação constitucional, por ausência de aderência estrita.“
A questão é: quais os paradigmas invocados? São eles: ADPF 324, ADC 48, ADI 5.625! E esses são diferentes do caso Rcl 55.806 porque nestes casos paradigmas foi aceita a terceirização da atividade-fim, a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor foi tida como lícita, mas porque não houve fraude segundo o entendimento do STF.
Pontue-se: nenhum ministro, seja do STF ou do TST, fixou que a terceirização ou a pejotização pudesse se sobrepor à fraude aos direitos trabalhistas. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “Ausentes os pressupostos legitimadores da reclamação, este remédio constitucional não pode ser utilizado como um atalho processual destinado à submissão imediata do litígio ao exame direto desta Suprema Corte, nem tampouco como sucedâneo recursal viabilizador do reexame do conteúdo do ato reclamado” (Rcl n. 10.036-AgR, relator o ministro Joaquim Barbosa, Plenário, DJe 1º.2.2012).
Portanto, é imprescindível que seja avaliada a situação fática para verificar a estrita aderência às teses fixadas nas ações ADPF 324 e RE 958.252 e/ou Tema 725, as quais são as principais invocadas quando se trata de terceirização e pejotização, conforme acurado estudo elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) na pesquisa “Terceirização e Pejotização no STF: análises das Reclamações Constitucionais”, quando se trata de admitir ou não uma Reclamação Constitucional.
Em resumo, a reclamação constitucional é medida extrema que visa a preservar a autoridade do STF e dos tribunais. Vale dizer: se o STF entende que pode terceirizar atividade-fim, isso não deve mais ser discutido porque se trata de tese sedimentada na mais alta corte da Justiça brasileira. Isso é ótimo porque norteia todas as demais instâncias da Justiça, conferindo, entre inúmeros outros benefícios, paz social, consistência nas decisões, segurança para empresários e investidores, enfim, estabilidade para o jurisdicionado.
Soberania da Justiça do Trabalho
A Justiça do Trabalho, e geralmente nas suas instâncias ordinárias, deveria ser soberana na produção, interpretação e valoração da prova.
Por outro lado, as instâncias extraordinárias — e aqui entenda-se TST e STF — deveriam, respeitando a prova produzida, conferir um ou outro entendimento, com o objetivo de trazer paz social e uma maior tranquilidade aos jurisdicionado sobre qual a jurisprudência majoritária. Neste sentido, e diante da situação fática estabelecida, se repetida, deveria resultar na mesma resposta dos mais altos escalões da Justiça brasileira — STF e TST — é a questão exata de se respeitar fortemente a aderência estrita.
Como ensina o eminente juiz do trabalho Mauro Schiavi, in Rev. TST, Brasília, vol. 82, nº 2, abr/jun 2016: “O comportamento das partes no processo e em audiência pode influir significativamente na convicção do Juiz do Trabalho. Desse modo, a personalidade, o grau de humildade ou a arrogância, a cooperação com a justiça, a firmeza no depoimento, a segurança ou a insegurança ao depor, a boa-fé, a honestidade dos litigantes, entre outros comportamentos, devem ser considerados pelo órgão julgador”, este contato entre juiz e a prova é extremamente valioso e único.
O tribunal, segunda instância, deveria, em regra, ser a última instância para valorar a prova, pois, no TST e no STF, a reavaliação de fatos e provas é vedada por força de entendimentos majoritários expressos, respectivamente, nas Súmulas “126 Recurso. Cabimento Incabível o recurso de revista ou de embargos (arts. 896 e 894, “b”, da CLT) para reexame de fatos e provas” e “279 Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”, e, sob este viés: a prova constituída nas instâncias ordinárias deveria ser respeitada de uma maneira muito séria e consistente pelas instâncias extraordinárias.
Não se discute-se, até porque concordamos, que a Constituição não impõe um modelo específico de produção, não fazendo sentido impor que todo e qualquer contrato de trabalho deva ser o de emprego, o celetista, aquele muito próximo de um modelo verticalizado, fordista, porque isso vai de encontro a um movimento global de descentralização. No entanto, os outros ou novos métodos de contratação de trabalhadores não podem servir para mascarar situações abusivas e que visão sonegar direitos trabalhistas e, inclusive, fraudar a Previdência Social e o Fisco nacional.
E aqui vale separar os conceitos de terceirização e pejotização. Naquela, há uma triangulação e a figura muito clara da contratante, empresa tomadora de serviços; da contratada, empresa que presta serviços através de seus empregados. Ao passo que nesta, há uma empresa contratante e uma prestadora de serviços contratada que presta serviços, normalmente, pelo seu sócio. Muitas vezes se vê uma sociedade uniprofissional, ou microempreendedor individual (MEI) sendo a prestadora de serviços na pejotização; ou até mesmo um único sócio na empresa prestadora, sem qualquer empregado nesta chamada pessoa jurídica; ou em outros casos, ainda, havendo verdadeira confusão entre a suposta empresa contratada e o profissional que executará os serviços contratados.
Sobre a liberdade para contratação e forma de gerir os negócios, o ministro Alexandre de Moraes, sustenta que:
“Vou, porém, mais além ao afirmar que a Constituição Federal tampouco impõe qual ou quais as formas de organização empresarial devam ou possam ser adotadas, pois assegurou a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. No sistema de produção capitalista, consagrado constitucionalmente, a escolha do modelo organizacional das empresas compete ao empreendedor, não podendo ser imposta pelo Estado. O texto constitucional não permite, ao poder estatal – executivo, legislativo ou judiciário – impor um único e taxativo modelo organizacional para as empresas, sob pena de ferimento aos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência” e, ainda, faz referência na decisão monocrática no julgamento da Rcl 56.285/SP (j. 06/12/2022) ao ministro Alexandre de Moraes ao ministro Roberto Barroso, e este afirma que: “12. Considero, portanto, que o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação.”
Essa parte final e destacada deixa claro que não será admitida a fraude e é o que verdadeiramente se espera.
Outra esfera que vez ou outra se depara com a discussão sobre o reconhecimento de vínculo de emprego é o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e, aqui, também há a avaliação da forma pela qual a relação entre tomador e prestador de serviços ocorre.
Oras se valida a relação sob o aspecto material e formal, ou seja, reconhece-se que não há qualquer vício ou fraude e, neste sentido, o contrato de prestação de serviço é validado.
Relação entre trabalhador e tomador de serviço
Já em outros momentos, o contrato de prestação de serviços, por vezes inclusive inexistente, não é suficiente para comprovar a licitude da relação entre trabalhador e tomador e, nestes casos, reconhecida a simultaneidade dos requisitos de pessoalidade, onerosidade, habitualidade e subordinação, os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT, o órgão declara a fraude e impõe a cobrança de encargos previdenciários, fiscais, multas e demais obrigações para aquela empresa contratante que passa a ser tida como empregadora.
A fiscalização, por vezes realizada pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, verifica a subordinação hierárquica em decorrência da determinação dos serviços a serem executados estarem especificados genericamente nos contratos apresentados e ainda por ter verificado que os contratos celebrados entre a fiscalizada e as pessoas jurídicas que acobertaram a relação laboral guardam uma similaridade, o que por si só já preconiza a subordinação, pois inexiste a liberalidade do contratado de interpor qualquer condição pessoal: tal é a regra já imposta pela subordinação a que estão submetidos, conforme Acórdão nº 2201-011.417.
Já no julgamento do processo que resultou no Acórdão nº 2401-011.584, foi fixado que “nos 8 casos analisados, não houve prestação de serviço por pessoa jurídica, mas sim, pelos sócios destas, com todas as características inerentes à relação empregatícia”, a subordinação ficou provada na medida em que: “…ficou claro para a fiscalização o cumprimento de atividade de controle, direção e fiscalização da empresa sobre as prestações de serviço dos trabalhadores tidos por ela como autônomos, cerceando a independência e o risco próprio da atividade autônoma, demonstrando a sujeição e subordinação caracterizadoras de vínculo de natureza empregatícia”.
Portanto, a despeito da esfera de avaliação dos casos submetidos a julgamento, as provas são extremamente relevantes e deveriam nortear o rumo das decisões.
É extremamente importante para o desenvolvimento do empreendedorismo e amadurecimento das companhias que exista e seja respeitada a liberdade para organização empresarial agir segundo desejam seus fundadores, acionistas, claro, desde que respeite os princípios econômicos, legais e éticos.
O artigo 1º da Constituição (CF) estabelece, em seu inciso IV, entre os fundamentos da República, a chamada livre iniciativa. Por sua vez, o artigo 170, caput, prevê que a “ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social(…)”. E esses fundamentos (livre iniciativa, liberdade econômica) são extremamente saudáveis e necessários para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, a busca do pleno emprego, entre outros objetivos da nação.
Mas há que se observar e permitir o uso das reclamações constitucionais e tantas outras medidas judiciais, até mesmo com natureza recursal, com cautela porque a prova constituída deveria ser respeitada e as instâncias ordinárias são soberanas nesta análise e avaliação.
O fato de serem admitidas reclamações constitucionais, utilizando-se de exame de aderência mais ampliado, sendo o estudo da FGV citado acima, e por vezes contrariando clara e diretamente as provas colhidas nas instâncias ordinárias da Justiça do Trabalho, traz insegurança.
No final, conquanto se respeite a pertinência técnica das reclamações constitucionais, é sumamente mais importante respeitar a prova produzida nas instâncias originárias, pois esta é imutável, devendo ser subsumida ao direito posto, do que se valer de princípios ideológicos, como, por exemplo, validação da terceirização de qualquer atividade, meio ou fim, enfatizando que existem outras formas de relação de emprego além da estabelecida pela CLT, desprezando ou, pior, contrariando as provas.
Alexandre Fragoso Silvestre
é advogado, sócio do escritório Briganti Advogados e mestre em Direito do Trabalho.
https://www.conjur.com.br/2024-mai-25/divergencias-entre-stf-e-tst-em-relacao-a-pejotizacao/