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PORTFÓLIO

Decretos de Lula para o saneamento são pragmáticos e oportunos

24 de abril, 2023

Abordagem entende expansão do setor como fomento a colaborações, não como desmonte do que já existe e funciona


RUBENS NAVES

Dizem que é urgente avançar rápida e consistentemente para reduzir o déficit nacional em saneamento, e que medidas que dificultem o atingimento das metas de universalização fixadas pelo marco de 2020 são “gols contra” em relação ao amplo interesse social e nacional. Sem dúvida! É isso mesmo. Não é possível que uma nação que se preze e se queira desenvolvida não veja a realidade atual – hoje, cerca de 15% dos brasileiros não recebem água potável, 45% não têm coleta de esgoto e 72% não são atendidos por redes de esgoto devidamente tratado – como intolerável, e o avanço rumo à universalização, como prioridade imediata e efetiva. 

Cabe já assinalar que essa constatação da urgência da expansão do setor deve nos inspirar desapego em relação às amarras ideológicas e aos interesses particulares, e impelir uma busca por caminhos e soluções práticas, realistas, as mais viáveis, eficientes e eficazes para as realidades, diversas, das diferentes regiões e situações Brasil afora. 

Como corolário do argumento da urgência, é afirmado que tudo que for feito para atrair, incentivar e favorecer o aumento da participação de investimentos e empresas privadas no setor é, por princípio, a coisa certa a fazer. Em seguida, se diz ou subentende-se, como se fosse decorrência lógica, que qualquer medida favorável à atuação e manutenção de empresas públicas (ou de economia mista controladas pelo poder público), ao deixar de abrir novos mercados para a privatização completa, corresponde a retrocesso. 

Como a maioria das soluções simples para problemas com certo grau de complexidade, esse argumento privatista genérico tem mais de crença ideológica ou de defesa de interesse do que de verdade autoevidente (basta olhar o mundo ao redor, no qual mais de 200 empresas de serviços integrados de água foram reestatizados nos últimos anos, para fazer essa constatação). 

A trinca argumentativa dominante na imprensa se completa com a afirmação da necessidade de segurança jurídica para que o setor possa acelerar sua expansão com a rapidez, solidez e sustentabilidade necessárias. Eis outra verdade com a qual concordamos plenamente, com a ressalva, um tanto óbvia, de que, quando uma regra se mostra irrealista e contraproducente, ela deixa de contar como “segurança jurídica” (pelo menos no sentido positivo, e racional, dessa expressão). Todos devem concordar que, quando a realidade mostra que a manutenção de uma norma tornou-se obstáculo ao atingimento dos objetivos que dão razão de ser à própria norma, é momento de tirá-la do caminho ou alterá-la. Certo? 

Vejamos o que muda no setor do saneamento com os decretos de Lula. 

Segurança jurídica sem fundamentalismos 

Foram estendidos prazos para estados e municípios se adequarem às regras do Marco Legal do Saneamento sem ficar impedidos de receber recursos federais para ampliar suas estruturas e serviços de saneamento. 

Seria a causa da universalização no menor prazo possível mais bem servida se os mais de mil municípios (onde vivem quase 30 milhões de brasileiros) que não cumpriram o prazo antes em vigor ficassem alijados dessas verbas? Dificilmente. 

Foi aberta possibilidade de manutenção de acordos entre companhias estaduais e municípios que optem por continuar sendo atendidos por elas – permanecendo obrigatório o cumprimento de parâmetros e metas de expansão da cobertura previstas pelo marco. Trata-se de medida que respeita e reforça o pacto federativo e a legitimidade democrática de representantes eleitos para definir políticas públicas. Não se vetou nem prejudicou a opção por editais abertos a empresas privadas – ela apenas deixou de ser imposição obrigatória. 

Diante da realidade de que existem regiões do país que se consideram bem atendidas por empresas públicas, estaduais, de saneamento e que podem preferir manter e expandir infraestrutura e serviços nesse modelo, qual seria a justificativa fundamentada no bem comum a obrigar uma mudança indesejada? As metas de universalização do marco legal? Mas, pelo contrário, a necessidade de avançar sem demora nem revezes justifica o acolhimento de diferentes arranjos regionais desde que alinhados às metas de universalização (fornecimento de água potável e de coleta e tratamento de esgoto para, respectivamente, 99% e 90% da população). 

Cabendo lembrar que o desafio da universalização sustentável corresponde essencialmente a levar saneamento para áreas e populações mais pobres com tarifas baratas, em geral subsidiadas, e à construção da sustentabilidade socioambiental de longo prazo – realizações que, conforme demonstra a experiência internacional, estão longe de serem decorrências naturais ou triviais da privatização do setor (mesmo quando previstas por leis, normas e contratos). 

Por fim, as novas regras instituídas por decreto ampliam a possibilidade de participação privada ao retirar da lei dispositivo que limitava parcerias público-privadas (PPPs) a um máximo de 25% do valor total do contrato entre o prestador e o titular dos serviços. Evidência complementar da ausência de corte ideológico e de preponderância do caráter pragmático do conjunto das mudanças. 

Nortear-se realística e pragmaticamente pelas metas do marco legal não se confunde com desmonte e substituição forçada de modelos fundamentalmente bem-sucedidos e avaliados. Passado o auge da influência das ideias ultraliberais do final do século 20, nas últimas décadas o imperativo do desmonte de empresas e sistemas públicos como algo benéfico por princípio deixou de ser a última palavra de modernização mundo afora. Entre nós, essa visão de mundo anacrônica – e especialmente irrealista no caso brasileiro – dominou o Executivo federal nos últimos anos e deixou resultados entre o medíocre e o desastroso. 

Confrontada nas eleições presidenciais de 2022, essa concepção privatista e antipública foi derrotada por uma compreensão mais nuançada e flexível do papel do Estado e de política pública, marcada pela legitimação e reconstrução da esfera pública, seus agentes e instrumentos. 

Equilíbrio flexível para a universalização 

A falta de visão contextual e ponderação de várias análises sobre os decretos de Lula também tem sonegado a informação de que, nos pontos de maior disputa de interesses, eles revertem vetos de Bolsonaro, fazendo valer a chamada “intenção do legislador”. A possibilidade de manutenção de arranjos entre municípios e companhias estaduais, por exemplo, foi articulada por meio de amplas negociações entre o Congresso, empresas públicas e governos estaduais. Sua retirada da versão final do marco legal por decisão presidencial foi, na época, amplamente criticada como um rompimento de um acordo de equilíbrio entre diferentes instâncias, bancadas e interesses legítimos. 

Não há nas novas regras para o saneamento nenhum prejuízo para a participação privada no setor. A retirada para o limite para PPPs vai em sentido contrário: abre novos espaços para agentes de mercado. A expectativa de impedimento obrigatório de arranjos entre municípios e empresas controladas pelo poder público seria, em face da Constituição e dos exemplos existentes de bons serviços, gestão eficiente e satisfação dos usuários, um risco de desarranjo e retrocesso que pode servir a interesses influentes (e eloquentes), mas à causa da acelerada universalização sustentável. 

A mudanças trazidas pelos dois decretos de Lula, em síntese, 1) restituem dispositivos importantes da lei do saneamento de 2020 que foram vetados por Bolsonaro, 2) reinstauram a segurança jurídica em relação a contratos vigentes, 3) evitam obstáculos para o atingimento das metas de universalização estendendo prazos de regularização, 4) respeitam o pacto federativo e dão efetividade à titularidade do poder público dos municípios para definir políticas públicas e parcerias, e 5) retiram obstáculos para mais participação e investimentos de agentes públicos e privados, desde que alinhados aos compromissos do marco legal do setor. 

Trata-se de um conjunto de medidas oportuno, ponderado e pragmático – desprovido do peso ideológico de fundamentalismos estatizantes ou privatistas. Abordagem que entende a coordenação da expansão do setor não como o desmonte do que já existe e funciona, numa cruzada para imposição de um modelo único, mas como fomento a colaborações, complementaridades e sinergias. Inclusive porque a existência e evolução de diferentes modelos e soluções permite comparação de resultados e identificação das melhores para cada município ou região. 

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