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PORTFÓLIO

Contrato de seguro ameaçado pelo antagonismo

23 de maio, 2025

Se o projeto de revisão for bússola, a recente Lei Especial prova que essa bússola está desorientada e fará naufragar o seguro brasileiro 

Por Ernesto Tzirulnik

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 4/2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco e elaborado por comissão de juristas chefiada pelo ministro Luís Felipe Salomão. É um projeto de revisão do Código Civil. O intento é gigantesco. Alguns o denominam projeto de revogação do Código Civil, pois atinge praticamente todo o diploma legal. Chamaremos de projeto de revisão para evitar dúvidas.

As modificações no capítulo sobre o contrato de seguro são um show de horrores e, no mais das vezes, diametralmente opostas à recente Lei Especial de Contrato de Seguro (Lei n.º 15.040/2024) aprovada por unanimidade no Congresso Nacional e sancionada sem vetos pelo presidente Lula, um mês antes da apresentação do projeto de revisão.

Apesar dessa evidente contradição, o senador Rodrigo Pacheco festeja o projeto de revisão: “Posso dizer, sem exageros, que ganhamos uma bússola.”

A bússola, porém, no que toca ao seguro, está descalibrada ou sofre alguma interferência de metal. Constitui grave atentado à recente Lei Especial de Contrato de Seguro, cujo projeto (PLC 29/2017) foi apoiado pelo mesmo senador Rodrigo Pacheco, seu relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em 2019, projeto esse que ele mesmo impulsionou ao pedir desarquivamento em 2023, e lutou para aprovar em 2024.

No seu parecer, o senador Rodrigo Pacheco elogiou o PLC 29/2017 e defendeu sua urgente aprovação, sem nenhuma modificação. Reconheceu o senador que “o PLC n.º 29, de 2017, é um projeto muito bem elaborado, que passou por um longo processo de maturação legislativa, e que foi aprimorado por meio de um amplo debate que envolveu especialistas, representantes do mercado securitário e de integrantes do governo. Colhemos a impressão de que se trata de uma proposta de inovação legislativa capaz de modernizar e reequilibrar as relações securitárias, de preencher as diversas lacunas atualmente existentes na legislação, merecendo ser, portanto, aprovado sem emendas, dada a sua alta relevância”.

Depois de 2019, o PLC 29/2017 foi aprimorado no Senado, renovando-se a convergência entre todos os setores interessados: consumidores, empresas contratantes, juristas, seguradoras, resseguradoras e corretores de seguro, além do governo. Com esse cuidado que se teve ao longo de duas décadas e o empenho pessoal do ministro da Fazenda Fernando Haddad, veio a lume um substitutivo do senador Otto Alencar que, aprovado por unanimidade em todas as comissões e no Plenário do Senado, foi igualmente confirmado na Câmara dos Deputados. Assim, transformou-se na primeira Lei Especial de Contrato de Seguro da história brasileira, situando o País, nessa matéria, ao lado das nações mais desenvolvidas do mundo.

Salvo algumas poucas regras copiadas da Lei n.º 15.040/2024 o projeto de revisão aponta para sentido oposto.

A Lei Especial, tecida em tramitação bastante democrática, com técnica jurídica e linguagem adequadas, procurou reequilibrar o negócio em prol dos segurados e beneficiários, sem descurar a proteção dos interesses das seguradoras, resseguradoras e corretores. Já o projeto de revisão, com precipitação no tocante aos dispositivos sobre o seguro, optou pela defesa de normas antiquadas que prejudicam os consumidores. Seu texto beneficia as seguradoras ou, melhor, àquelas que pretendem se opor desmedidamente aos segurados, beneficiários e terceiros vitimados por acidentes.

Objetivamente, são textos contrários à Lei n.º 15.040/2024 na técnica e no conteúdo. Se o projeto de revisão for bússola, a recente Lei Especial prova que essa bússola está desorientada e fará naufragar o seguro brasileiro.

Exemplifico, a seguir, a má estruturação do capítulo do Código Civil a respeito do contrato de seguro no projeto de revisão.

Para começar, pasmem, o projeto de revisão quer modificar um capítulo já revogado pela Lei Especial de Contrato de Seguro, da qual, aliás, reproduz integralmente diversos dispositivos (§1º, do art. 759; parágrafo único, do art. 760, § 1º, do art. 768; parágrafo único, do art. 771-A; art. 771-B; art. 771-D; parágrafo único do art. 778; parágrafo único do art. 792; etc.), misturando-os com outros de índole diversa. Uma colcha de retalhos cheia de furos e arremates.

O primeiro artigo (757, do CCB), que define o contrato de seguro, no caput não foi alterado pelo projeto de revisão. Já a Lei Especial melhora substancialmente a redação dessa regra definidora (art. 1º), esclarecendo que não são apenas interesses relativos a pessoas ou coisas que podem ser segurados, mas também os interesses relacionados a quaisquer outros bens da vida, materiais ou imateriais, como os direitos em geral.

Também foi incluído, no projeto de revisão, um §2º ao art. 757, evidentemente inconstitucional, regulando aspectos administrativos do Sistema Nacional de Seguros Privados, matéria reservada à lei complementar e que já se encontra minuciosamente regulada no decreto-lei n.º 73/1966, inclusive por recentes alterações da Lei Complementar n.º 213/2024.

A norma imediatamente seguinte é o art. 757-A. Nociva aos segurados empresários, ela cria falsa paridade entre segurado e seguradora na produção do conteúdo essencial dos contratos de seguro, como se eles, na vida concreta, pudessem ser realmente minuciosamente negociados, com igualdade de condições. Ora, nem as seguradoras podem livremente escrever suas apólices, pois devem seguir os guidelines das suas resseguradoras que, em geral, utilizam modelos internacionais, como as regras do London Engineering Group para os seguros de construção ou engenharia.

Para se ter ideia da desproporção de poder entre qualquer segurado e uma seguradora sujeita ao resseguro, basta lembrar que em 2007, último ano do monopólio do resseguro no Brasil, o volume de prêmios de retrocessão pagos apenas pela resseguradora Munich Re era de 800 milhões de dólares e representavam meros 10% dos prêmios arrecadados por essa resseguradora alemã, enquanto todos os seguros brasileiros permitiam retroceder US$ 700 milhões, isso representando 50% dos prêmios arrecadados pelo IRB monopolista, ou seja, por todo o mercado brasileiro.

Foram as resseguradoras internacionais que escreveram, até mesmo, o texto padrão das apólices de seguro de riscos de engenharia no Brasil, como testemunhou, em obra de doutrina, importante dirigente de resseguradora.

Só juristas distantes da realidade securitária ou desejosos de artificial isonomia, para afastar a regra in dubio pro aderente, poderiam imaginar os tais seguros paritários e propor presunção de igualdade nesses contratos.

O prejuízo direcionado aos grandes segurados é evidente na regra sugerida como parágrafo único do art. 762 do projeto de revisão, em que se propõe que “nos contratos simétricos e paritários, a culpa grave se equipara ao dolo”.

Ao mesmo tempo, dispara contra a ordem pública a regra do art. §2º do art. 768. Embora nenhum sistema jurídico no mundo admita deixar ileso de consequências o agravamento doloso do risco, essa norma diz que “nos contratos paritários e simétricos, o agravamento intencional de que trata o caput deste artigo pode ser afastado como causa de perda de garantia.” Para o projeto de revisão, as partes podem incivilmente pactuar condutas dolosas em detrimento uma da outra!

A lista de disparates não caberia neste artigo, mas para ilustrar o conflito entre o projeto de revisão e aquilo que o seu autor elogiava na recente Lei Especial de Contrato de Seguro, tome-se o artigo que, para provar a existência do contrato de seguro, exige a emissão pela seguradora de apólice ou documento escrito equivalente em suporte físico ou digital (art. 758).

Ora, entre os méritos do então PLC 29/2017, o parecer do senador Rodrigo Pacheco elogiava justamente o contrário, a consensualidade do seguro e sua liberdade probatória: “Assim, além de diversos outros pontos positivos, acreditamos que merecem destaque as inovações legislativas contidas no projeto que trazem maior segurança jurídica aos contratos de seguros, a saber: (…) a previsão da formalização de seguros por qualquer meio idôneo, durável e legível, capaz de ser admitido como meio de prova (art. 45), o que possibilita a contratação por meio de conversas telefônicas gravadas, por exemplo.”

Além disso, o projeto de revisão faz silêncio absoluto a respeito do tema da regulação de sinistro que, a propósito, em 2021 levou duro golpe de acórdão escoteiro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tornando inacessível aos segurados e beneficiários os relatórios de regulação e liquidação do sinistro que os vitimou, enquanto uma das vantagens salientadas pelo senador Rodrigo Pacheco, no seu parecer de 2019, foi justamente “o direito dos segurados aos atos e dossiês de regulação do sinistro quando ocorra a negativa de cobertura, como forma de o segurado poder buscar o seu direito na Justiça.”

Outro exemplo são as regras sobre a interpretação do contrato, como “a previsão de que em caso de dúvida sobre critérios e fórmulas destinados à apuração do valor da dívida da seguradora, sejam adotados aqueles que forem mais favoráveis ao segurado ou ao beneficiário.” Essa regra, presente na Lei Especial não está em lugar nenhum do projeto de revisão.

Enfim, aquilo que o senador Pacheco considerou mais importante na Lei Especial de Contrato de Seguro, faltou ou foi contrariado no projeto de revisão de sua autoria.

Certamente, o projeto de revisão precisa ser revisado e livrar-se, entre outras mazelas, do capítulo sobre o contrato de seguro que, repita-se, já foi revogado pela nossa alvissareira Lei Especial de Contrato de Seguro. Do contrário, a desorientação encalhará o seguro brasileiro. 

Opinião por Ernesto Tzirulnik

Doutor em Direito pela USP, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro da OAB-SP, coordenador do curso de Direito do Seguro da Escola Nacional de Seguros (ENS). Coordenou a elaboração do anteprojeto da Lei 15.040/2024

https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/contrato-de-seguro-ameacado-pelo-antagonismo/

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