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Como o Judiciário pode articular uma solução para a Sabesp

7 de maio, 2024

No apressado processo de privatização da Sabesp, o governo paulista vem tentando dar consistência ao projeto à medida que suas lacunas são apontadas. Uma das várias indefinições temerárias que a gestão de Tarcísio de Freitas agora busca superar diz respeito à exigência de continuidade de gestão da empresa por um “investidor estratégico”.

O atraso na compreensão de que uma privatização desse tipo requer um controlador bem definido, comprometido com o cumprimento dos acordos firmados com o poder público, é mau sinal. Evidencia açodamento e inconsistência, indicando que o futuro da empresa, do saneamento e dos recursos hídricos do estado não estão sendo tratados com o devido cuidado.

A situação se mostra mais preocupante quando constatamos que os riscos implicados na alienação do controle acionário da Sabesp não se esgotam nas especificidades e lacunas do projeto de privatização. Há razões mais fundamentais para se opor à privatização, que podem ser sintetizadas em três perguntas.

1) Por que os paulistas deveriam abandonar um modelo institucional — de economia mista sob controle estatal — que fez de São Paulo o líder nacional em cobertura e qualidade do saneamento básico, gera lucro e dividendos para acionistas (incluindo o governo do estado), vem cobrando tarifas módicas ao longo de décadas e é eficiente e eficaz para lidar com momentos de crise hídrica?

2) Por que trocar esse modelo bem-sucedido por outro — o do controle privado da prestação de serviços públicos essenciais “naturalmente monopolistas” (pela inviabilidade prática de concorrência) — que vem se comprovando insustentável mundo afora (como fica evidenciado pelas centenas de casos de restatização do saneamento em diversos países)?

3) Por que fazer essa mudança arriscada, na contramão da tendência internacional, neste momento em que a aceleração das mudanças climáticas agrava os desafios socioambientais relacionados à água, demandando mais — e não menos! — controle público e gestão estratégica do Estado?

O que pode dar errado?

Estamos em meio a um processo arriscado, inconsistente e inoportuno, tocado em ritmo de atropelo, que poderá gerar impactos dramáticos para a sustentabilidade do desenvolvimento socioambiental do estado de São Paulo nos próximos anos e décadas.

Para reconhecer os riscos em jogo no caso da Sabesp, basta olhar para outros processos de privatização do saneamento, que também foram anunciados por governantes e lobistas como grandes pacotes de vantagens coletivas.

Um dos muitos exemplos de prejuízos socioambientais resultantes de processos de privatização é o da Thames Water, maior operadora de serviços de saneamento da Inglaterra. A empresa tem um histórico que combina aumento de tarifas acima da inflação, crescentes danos ambientais e farta distribuição de dividendos para acionistas.

Em março, a Thames Water tentou emplacar um novo plano de elevação das tarifas — que aumentariam em 40% — e, diante do veto do órgão regulador do setor, revelou-se insolvente, incapaz de pagar parcela vencida de suas dívidas. A empresa acumula uma dívida total de cerca de R$ 115 bilhões, que dificilmente deixará de ser paga, pelo menos em parte, pela sociedade.

Inconstitucionalidades e insegurança jurídica

Além de não apresentar respostas satisfatórias para essas perguntas, o projeto de privatização da Sabesp — já aprovado pela Assembleia estadual e pela Câmara paulistana — contém inconstitucionalidades.

A Constituição do estado São Paulo determina o controle acionário da empresa pelo governo estadual e veta alienação desse controle.

Há também conflito com a Constituição.

O modelo de governança das Uraes (blocos de municípios que compartilham mananciais e infraestrutura), atrelado ao projeto de privatização, viola a titularidade municipal do saneamento, determinação constitucional reconhecida em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). A regra construída pelo governo paulista atribui um poder decisório aos governos do estado e da capital que, na prática, poderá revogar essa prerrogativa constitucional de municípios menores.

Além de projetar insegurança e riscos para o futuro da Sabesp, do saneamento e da gestão de recursos hídricos, esse conjunto de lacunas e questionamentos constitucionais sinaliza insegurança jurídica — inclusive para os possíveis interessados na privatização e potenciais investidores no saneamento paulista.

O Judiciário pode, e sabe, coordenar soluções

A relevância dos riscos e a complexidade dos desafios implicados nas decisões acerca da gestão do saneamento e o futuro da Sabesp não serão bem abordados por decisões judiciais que se limitem a autorizar ou impedir o prosseguimento, total ou parcial, dos projetos precários atualmente em curso. O momento e a questão clamam pela qualificação do debate e por uma mediação qualificada da construção de soluções.

Em processos de grande relevância social e complexidade, o STF já deu exemplos desse tipo de atuação judicial, convocando estudiosos, diferentes pontos de vista e interesses legítimos. Acolhendo amici curiae — partes interessadas e especialistas que ajudam na ampla compreensão das questões em julgamento e na busca das melhores soluções — e articulando decisões moduladas, o tribunal já deu bons exemplos de condução judicial moderna e democrática, que busca o bem comum acima da mera disputa contenciosa.

No caso da Sabesp, antes de chegar ao Supremo, essa oportunidade se abre ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Mediador ideal na busca da melhor solução para o saneamento paulista, o TJ-SP tem também experiência bem-sucedida nesse tipo de atuação.

Em 2013, a corte estadual reconheceu a pertinência de uma proposta de realização de audiência pública, mediação, validação e acompanhamento de decisão para a superação da falta de vagas públicas em creches na cidade de São Paulo. Sob a coordenação do tribunal, a prefeitura e uma articulação de representantes das crianças e suas famílias (incluindo representantes da sociedade civil, Defensoria Pública, Ministério Público e advocacia) implementaram um monitoramento para zerar o déficit de mais de 150 mil vagas na educação infantil, que vem sendo cumprido.

Atualmente, não há mais uma longa fila de espera, e as crianças e famílias que precisam de vagas públicas em creches estão sendo atendidas. Conforme os termos acordados, as entidades envolvidas acompanham, por meio de um comitê de monitoramento criado pelo TJ-SP, não somente o efetivo atendimento da demanda, como também a qualidade dos serviços prestados, medida por indicadores.

Diálogo qualificado norteado pelo bem comum

Prover saneamento de qualidade para todos com sustentabilidade socioambiental a longo prazo é um desafio vital que clama por um tratamento cuidadoso e qualificado por parte do poder público – e precisa ser reconhecido e abordado como tal. Numa democracia, esse reconhecimento enseja um processo de diálogo, negociação e ampla legitimação.

Ao abordar o projeto do governo estadual para Sabesp, o TJ-SP poderá acolher, em audiência pública representantes da sociedade civil, especialistas em saneamento e regulação de serviços públicos, Ministério Público, Defensoria Pública, tribunais de contas e a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp).

Com a efetiva participação desses atores, o tribunal elevará a qualidade técnica e a representatividade da solução a ser construída, e fortalecerá compromissos com o processo posterior, de implementação e acompanhamento.

O desafio coletivo da gestão das águas e do saneamento básico para a sociedade paulista de hoje e de amanhã requer uma maior tomada de consciência por parte do poder público e da sociedade.

A gravidade da questão e do momento nacional e planetário clamam por debate e negociação participativos, realistas e pragmáticos. Diversos fatores — como a vontade política legítima de governantes eleitos nas instâncias estadual e municipal, o respeito ao princípio federativo, a experiência internacional, as evidências acumuladas e o saber científico — precisam ser levados em consideração e ponderados.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pode e deve assumir o papel de coordenação desse processo.


é advogado, autor de “Saneamento para Todos” (ed. Palavra Livre) e “Água, Crise e Conflito em São Paulo” (ed. Via Impressa); ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP.

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