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TRF-2 mantém multas aplicadas em novo sistema de pedágio

23 de julho, 2024

Modelo de fluxo livre teria gerado 733 mil multas por evasão, o que equivale a mais de R$ 143 milhões

Por Marcela Villar — De São Paulo

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) manteve a aplicação de mais de 733 mil multas por evasão de pedágio na BR-101, a Rodovia Rio-Santos, que conecta o município do Rio de Janeiro a Ubatuba, em São Paulo. É nesse trecho que foi instalado o primeiro pedágio no modelo free flow (sistema de fluxo livre, onde não há cancelas ou guichê para pagamento) em uma estrada federal do país, que ainda está em um período de teste (sandbox) regulatório, mas é uma tendência mundial.

A decisão, que derrubou liminar dada em ação civil pública, beneficia a concessionária CCR Rio-SP, que administra a Rio-Santos, e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Pelo número de multas, o valor em discussão ultrapassa os R$ 143 milhões.

Para especialistas, o entendimento do TRF-2 consagra a validade do novo sistema, já aplicado na Europa e Estados Unidos, que no ano que vem deve ser instalado na Rodovia Presidente Dutra, entre as cidades de Guarulhos (SP) e São Paulo. Também há estudos, segundo a ANTT, para a Ponte Rio-Niterói.

Essa é a primeira ação civil pública que questiona a validade das multas aplicadas no novo modelo de pedágio. Foi ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU) e Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DEF-RJ) contra a ANTT e a CCR Rio-SP por entenderem haver falhas no sistema.

Há outros processos sobre o tema, mas não questionam o sistema em si. Pedem a isenção para moradores dos três municípios afetados pela instalação dos pórticos: Paraty, Itaguaí e Mangaratiba, no Rio de Janeiro.

Na ação da Prefeitura de Itaguaí, a isenção não foi dada (processo nº 5004720-47.2023.4.02.5101), assim como no caso da Prefeitura de Paraty, que chegou a subir para o Supremo Tribunal Federal (Suspensão de Tutela Provisória nº 959). Ainda não há decisão no processo de Mangaratiba.

Na ação civil pública, os órgãos afirmam que os usuários não têm recebido informações suficientes sobre onde regularizar o débito, uma vez que não há um guichê físico ou funcionário no local para auxiliar ou tirar dúvidas. Também dizem haver cobranças em duplicidade e aplicação de multa mesmo após o pagamento.

A concessionária sabe da passagem pelo pedágio por meio da leitura de Tag ou da placa do veículo. Se o motorista já tiver Tag, o pagamento é automático. Caso contrário, terá 15 dias para pagar a tarifa ou receberá uma multa de R$ 195,23, além de cinco pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

Para o MPF, DPU e DEF-RJ, os usuários foram penalizados por falhas da concessionária em implementar o novo modelo e pela falta de fiscalização da ANTT da concessão. No pedido de 118 páginas, eles dizem haver “abuso do poder de polícia” da agência, que tem lavrado “indiscriminadamente autos de infração por evasão de pedágio, em desprezo ao caráter experimental do sistema de cobrança”.

Descrevem a prática como “uma verdadeira ‘indústria de multas’ às custas dos consumidores do serviço ineficientemente prestado pela concessionária, os quais se viram e ainda se veem como ‘cobaias’ de um experimento em que somente eles, os usuários, suportam os ônus da má prestação do serviço”.

Já a CCR Rio-SP diz que os supostos defeitos indicados foram sanados, que há diversas placas de sinalização ao longo da rodovia e que o pagamento pode ser feito em seis canais diferentes – TAG, aplicativo, website, WhatsApp, totens físicos e estabelecimentos parceiros. Segundo ela, 94% dos usuários pagam sem dificuldades.

A empresa alega ainda, nos autos, que a maioria das inconsistências remete ao mês de outubro de 2023, quando houve uma instabilidade no sistema, e que, a partir deste ano, as informações sobre as tarifas devidas ficaram disponíveis em até 48 horas para os motoristas.

Com base nos argumentos da empresa, a 6ª Turma Especializada do TRF-2, de forma unânime, entendeu que era preciso manter as multas. Isso porque a suspensão “colocaria em risco o custo operacional de manutenção do sistema Radar” e “compromete o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão”.

O relator, Guilherme Couto de Castro, disse ainda ser preciso analisar mais provas para entender se houve alguma ilegalidade cometida pela ANTT. Ele já havia dado uma liminar, em abril, para suspender uma cautelar de primeira instância. Foram julgados dois agravos de instrumento em conjunto, um da concessionária e outro da agência (processos nº 500 6284-04.2024.4.02.0000 e nº 5005697-79.2024.4.02.0000).

Leonardo Quintiliano, advogado e professor de direito administrativo, lembra que o sandbox regulatório foi criado com o Marco Legal das Startups (Lei Complementar nº 182/2021) e serve para fomentar a inovação e tecnologia de forma menos burocrática, em que se pode testar modelos e sistemas sem a aplicação de sanções legislativas mais rigorosas. Ele pontua, porém, que nesse período de teste, de dois anos, enquanto os motoristas estão sendo usados como “cobaias”, não deveria haver a aplicação de multas, como decidiu a primeira instância. “Não tem problema usar as pessoas de cobaias, desde que não as puna por uma falha no sistema.”

Na visão do especialista, o período de três meses de adaptação, em que não foram cobradas multas por evasão, foi curto. “O usuário está tendo um duplo ônus, de ter que se adaptar a um sistema totalmente novo, que não é fácil para muitas pessoas, como idosos e pessoas com deficiência, e ainda se impõe uma multa”, afirma Quintiliano. Ele tampouco concorda com a premissa usada pela concessionária de que se as multas forem canceladas, os motoristas não iriam mais pagar o pedágio. “A má-fé não se presume.”

O professor pondera que para implementar o modelo de free flow, ainda mais em sandbox regulatório, seria preciso uma nova licitação. “A concessionária já era a concessionária da rodovia e, no meio do contrato, pegaram carona em uma ideia de substituir as cabines pela passagem livre. E, quando o contrato muda muito, pode ser considerada uma forma de burlar a licitação.”

A concessão da rodovia foi firmada em janeiro de 2022. Através de um aditivo contratual, o sistema free flow foi implementado em fevereiro de 2023.

Para Denis Passerotti, sócio do Passerotti Sociedade de Advogados, a concessionária demonstrou que o sistema é eficaz. “Se implementou um sistema que é suscetível a falhas e, por conta disso, se busca afastar a aplicação dessas penalidades. Mas, pela decisão, ficou demonstrado que o sistema tem eficácia superior a 90% e que a evasão do pedágio é mínima”, avalia.

A DPU informou ao Valor que ainda não recorrerá do agravo, pois aguarda a decisão de mérito da primeira instância. O MPF e a DEF-RJ estudam a “melhor estratégia jurídica a ser utilizada”.

A ANTT, por meio de nota, diz ser “pioneira na implementação do free flow em rodovias no Brasil” e que o modelo, que está em período experimental por dois anos, amplia “a segurança viária, fluidez e conforto para os usuários”. A agência acrescenta que “monitora atentamente o desenvolvimento do sistema, solicitando melhorias à CCR Rio-SP quando necessário”.

A CCR Rio-SP não deu retorno até o fechamento da edição.

https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/07/23/trf-2-mantem-multas-aplicadas-em-novo-sistema-de-pedagio.ghtml

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