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Quais crimes foram anistiados pela lei de 1979? Quem se beneficiou? Entenda
Legislação excluiu condenados por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, mas na transição para democracia penas foram revistas
Por Gabriel Belic
A discussão sobre um projeto de lei para anistiar os envolvidos nos atos golpistas do 8 de Janeiro suscitou comparações com a Lei da Anistia de 1979. Ela perdoou todos os “crimes políticos ou conexos com estes” cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Postagens virais alegam, por exemplo, que a esquerda teria sido anistiada em 1979 por terrorismo, assalto, sequestro e assassinato. No entanto, esses conteúdos desconsideram o contexto histórico e distorcem o próprio texto da legislação.
A Lei da Anistia excluiu explicitamente do perdão os condenados por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Apesar disso, aqueles que foram acusados, mas não haviam recebido uma condenação definitiva, beneficiaram-se da anistia.
Embora os condenados pelos crimes expressamente excluídos pela Lei de Anistia ficassem de fora do perdão, especialistas consultados pelo Verifica explicaram que, em muitos casos, houve uma reavaliação da pena pelo Judiciário. Esse procedimento fez parte de uma transição para o regime democrático.
Além disso, vale dizer que não apenas militantes de esquerda foram anistiados. Os agentes da ditadura também foram perdoados – cerca de 4,5 mil militares das Forças Armadas fazem parte da lista de anistiados políticos.
Veja abaixo um breve resumo sobre a Lei de Anistia de 1979 e o que veio depois:
- A lei de 1979 perdoou “crimes políticos ou conexos a eles” cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979;
- A legislação excluía quem foi condenado pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal;
- Em 1988, a Constituição Federal dispõe sobre a anistia como um direito do perseguido político entre 1946 e 1988;
- A Constituição determina que a prática da tortura, o tráfico de drogas, o terrorismo e os crimes hediondos não podem ser anistiados;
- Em 2002, é sancionada a lei que cria a Comissão de Anistia, responsável por examinar pedidos de perdão político a quem foi perseguido por motivação exclusivamente política entre 1946 e 1988;
- A equipe não concede perdão judicial, mas organiza um programa de reparação de caráter indenizatório.
O que é anistia?
O advogado e historiador Gustavo Cavalcante Zilli, do escritório Callado, Petrin, Paes e Cezar Advogados, explica que a anistia de crimes ocorre quando o Estado renuncia o “direito de punir” indivíduos que cometeram delitos. Em geral, de cunho político. Trata-se de um perdão coletivo, e não restrito a uma ou poucas pessoas.
O advogado Henrique Attuch, criminalista do escritório Wilton Gomes Advogados, acrescenta que a anistia só pode ser concedida por lei, aprovada pelo Congresso Nacional e posteriormente sancionada pelo Presidente da República.
Lei de anistia de 1979 excluía condenados por terrorismo
Em 1979, o último militar a comandar o regime ditatorial, João Figueiredo, sancionou uma lei que anistiou todos os que, entre 1961 e aquele ano, cometeram crimes políticos ou eleitorais. A Lei 6.683/1979 também contemplava servidores, agentes públicos e líderes punidos por Atos Institucionais e Complementares no mesmo período.
A Lei da Anistia perdoa também os crimes conexos, aqueles “de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. O advogado Zilli explica que, nesse contexto, a lei se estendeu aos crimes praticados por agentes da ditadura.
Dessa forma, a Lei da Anistia não perdoou apenas os opositores à ditadura. A Lei de 1979, na verdade, também contemplou os próprios algozes do regime.
Apesar disso, havia exceções ao perdão. Ficaram de fora da anistia “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Por essas razões, Zilli aponta que a anistia foi “ampla e geral”, mas não “irrestrita”.
O advogado Belisário dos Santos Jr, membro da Comissão Arns, explica que os acusados desses crimes excluídos que ainda não tinham uma condenação definitiva foram anistiados.
“Alguns meses depois da anistia, o Supremo Tribunal Federal entendeu que, ainda que as pessoas tivessem sendo processadas pelos crimes insuscetíveis de anistia, mas cuja sentença não tivesse transitado em julgado, esse crime seria considerado anistiado”, completou.
Penas de quem não foi anistiado foram revistas
Segundo o historiador Daniel Aarão Reis, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), a transição de regimes que o Brasil vivia em 1979 explica a promulgação da Lei da Anistia.
“Em situações deste tipo, é comum e é salutar haver processos de anistia que podem assumir variadas formas. Um outro aspecto é que os anistiados de então haviam sido presos, muitos, torturados, julgados com direito de defesa cerceado, não poucos, assassinados”, disse.
De acordo com o professor, houve uma redução drástica das condenações para aqueles que não foram contemplados pela anistia. Isso permitiu que esses indivíduos fossem soltos por “bom comportamento”.
Aarão Reis destaca que as tipificações de crimes como terrorismo eram próprias da legislação ditatorial. Isso significa que eram leis de um Estado de exceção, que não foram aprovadas por representantes eleitos. Dessa forma, segundo o professor, elas eram impróprias para o regime democrático para o qual o País transitava.
O historiador Alexandre Queiroz, pós-doutorando na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ressalta que os presos políticos que não foram contemplados pela Lei da Anistia tiveram as penas revistas por outros recursos. Segundo o pesquisador, parte deles foram indultados, enquanto outra parte foi reavaliada pelo Judiciário.
O que veio depois da Lei de Anistia de 1979?
A Lei de Anistia de 1979 foi limitada aos delitos cometidos entre 1961 e o ano da promulgação. Anos depois, a Constituição Federal de 1988 voltou a dispor sobre a anistia política no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
O artigo 8º do ADCT determina anistia aos que foram perseguidos por motivação exclusivamente política entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988. O dispositivo assegura “as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo”.
Com isso, de acordo com o historiador Queiroz, abria-se a possibilidade de indenização financeira para os perseguidos pela ditadura.
“É o que o Fernando Henrique Cardoso vai aprofundar com a Lei dos Desaparecidos e com o começo da indenização aos anistiados da ditadura”, explicou.
Na Constituição de 1988 fica fixado que a concessão de anistia cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República. Além disso, a Carta Magna determina que “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos” não são suscetíveis de anistia.
Em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) publica a Lei 9.140. Ela ficou conhecida como Lei dos Mortos e Desaparecidos, e estabeleceu uma reparação pecuniária aos familiares dessas pessoas.
Mais tarde, em 2002, o governo federal sanciona a Lei 10.559, que dispõe, dentre outras questões, sobre a condição de anistiado político e a indenização a essas pessoas. Ela faz referência à Constituição, determinando que os declarados anistiados políticos são aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, foram perseguidos por motivação exclusivamente política.
A lei criou a Comissão de Anistia, que hoje está no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O objetivo é examinar requerimentos e assessorar o ministro em decisões de declaração de anistia política. Se deferido o pedido, o anistiado terá sua condição declarada e poderá obter indenização.
O advogado Belisário ressalta que a Comissão de Anistia não concede perdões judiciais. Ele destaca que uma anistia judicial deve ser concedida por um ato legislativo.
“A Comissão de Anistia apenas concede os benefícios previstos na lei para as pessoas anistiadas”, explicou.
O historiador Alexandre Queiroz ressalta que a comissão recebe milhares de pedidos de concessão de condição de anistiado político. A grande maioria, destaca o pesquisador, não é de pessoas que participaram de organizações armadas.
“Tem um número incrivelmente alto de vereadores. Um dos atos institucionais da ditadura determinou que os vereadores deveriam cumprir o mandato de forma gratuita, sem receber salário”, explicou. “São muitos mais numerosos esses casos do que de pessoas que participaram ativamente contra a ditadura militar”.
Dados coletados até dezembro do ano passado mostram que a Comissão de Anistia havia recebido mais de 80 mil pedidos. Dentre os pedidos deferidos, havia mais de 20 mil vereadores.
Artistas que se apresentaram contra anistia de Bolsonaro não foram anistiados em 1979
No último dia 21, milhares de pessoas protestaram contra a PEC da Blindagem e a anistia aos envolvidos nos atos golpistas do 8 de Janeiro. Desde então, postagens nas redes sociais apontam “hipocrisia” de governistas e figuras públicas que aderiram ao protesto.
Os cantores Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan e Gilberto Gil fizeram apresentações musicais no ato do Rio de Janeiro, e foram chamados de “anistiados contra a anistia”. As postagens fazem referência à Lei de Anistia, mas são falsas. Os artistas mencionados não foram beneficiados pelo perdão da lei de 1979, conforme mostrou o Verifica.
Outra figura pública que foi alvo de boatos foi a ex-presidente Dilma Rousseff. Ela comumente é chamada de “assaltante de bancos” nas redes sociais – alegação que já foi desmentida diversas vezes.
Postagens recentes compartilham que Dilma teria sido perdoada pelos crimes de terrorismo e assalto, o que também é mentira. A ex-chefe de Estado foi, de fato, considerada anistiada política, mas não há evidências da participação de Dilma em ações armadas.
A jornalista Miriam Leitão também é chamada de “anistiada” em postagens virais que defendem a proposta para perdoar os envolvidos nos ataques antidemocráticos. Mas essa alegação, assim como as outras, já foi refutada pelo Verifica e Projeto Comprova.
(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/terroristas-anistiados-lei-anistia-1979/