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Programa Mover tomou as rédeas da sustentabilidade automobilística?
Depois de uma longa espera, a indústria automotiva ganhou mais um caminho a ser trilhado em busca da sustentabilidade ambiental. O Projeto de Lei (PL) nº 914/24, que institui o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), foi finalmente aprovado, na esteira dos seus antecessores, Rota 2030 e Inovar Auto.
O Mover tem por escopo principal a descarbonização da indústria automotiva brasileira, bem como o estímulo ao desenvolvimento tecnológico e à competitividade global do setor, buscando, a partir da concessão de incentivos fiscais e financeiros, incentivar o consumo e a produção de veículos sustentáveis.
Como já esperado, a Lei nº 14.902 (DOU de 28.6.2024) não trouxe grandes alterações em relação ao seu projeto inicial e com a já revogada Medida Provisória (MP) nº 1.205/23, reforçando o uso do mecanismo extrafiscal, com o objetivo de estimular determinadas condutas.
Entre outras frentes, por meio do critério da seletividade, serão fixadas alíquotas progressivas para o IPI, a partir de um sistema bônus e malus, de acordo com as externalidades negativas ou positivas dos veículo, levando-se em conta o menor ou maior grau de sustentabilidade dos veículos, observando-se os percentuais mínimos relacionados à eficiência energética; ao desempenho estrutural e tecnologia assistiva à direção; e à reciclabilidade, além de considerar os atributos próprios do produto, como fonte de energia e tecnologia de propulsão, potência do veículo e pegada de carbono.
No mais, o Programa Mover também prevê a possibilidade de registro de versão sustentável do automóvel ou veículo comercial, desde que atendidos a critérios específicos de sustentabilidade ambiental, social e econômica, com a previsão de “alíquota específica” de IPI.
No tocante ao imposto de importação, também não foram identificadas alterações relevantes, mantendo-se a previsão de redução do imposto sob a condição de realização de investimentos no importe de 2% sobre o valor aduaneiro em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação em programas prioritários para o setor automotivo e sua cadeia no Brasil para as empresas que aderirem ao “regime de autopeças não produzidas”, previsto no artigo 6º do Acordo sobre a Política Automotiva Comum entre a República Argentina e a República Federativa do Brasil, anexo ao 38º Protocolo Adicional ao Acordo de Complementação Econômica nº 14 (ACE 14), observando-se as disposições da Portaria GM/MDIC nº 86/2024.
Dentre outras disposições, o Mover prevê a ampliação dos requisitos obrigatórios para a comercialização e importação de veículos novos, com base na tabela de incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (Tipi), a partir de critérios de eficiência energético-ambiental, tecnológica e de rotulagem, considerando o sistema de medição de carbono “ciclo do poço à roda”, bem como a previsão de multas compensatórias no caso de descumprimento. A partir de 2027 também deverão ser observados os requisitos obrigatórios relacionados à pegada de carbono no sistema de medição de carbono “ciclo do berço ao túmulo”.
Referido programa ainda regulamenta o “regime de incentivos à realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento para as indústrias de mobilidade e logística”, por meio do qual as empresas que cumprirem determinados requisitos estabelecidos na lei poderão fazer jus a créditos financeiros relativos a dispêndios em P&D e investimentos em produção tecnológica no país, observando os limites relacionados a cada modalidade.
Programa de incentivo em pesquisas
Na prática, com a edição da Lei nº 14.902/24, as empresas poderão retomar seus pedidos de habilitação ao programa de incentivo em pesquisas e desenvolvimento e produção tecnológica perante o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), observando-se o procedimento estabelecido pela Portaria GM MDIC nº 43/24.
Convém aqui abrir um rápido parêntese. Um ponto da nova lei que chamou a atenção no mercado foi a revogação da isenção do imposto de importação para compras de até US$ 50, alteração esta que passará a valer a partir de agosto de 24, observando as disposições constantes na MP nº 1.236/24 e na Portaria MF nº 1.806/24, editadas simultaneamente para regulamentação dessa nova tributação e dos limites de isenção. Referida alteração foi palco de discussão e destaque na mídia nos últimos tempos, especialmente por ser inserida em um programa voltado essencialmente à descarbonização da indústria automotiva e sustentabilidade ambiental.
Pois bem, voltemos ao cerne da questão. Apesar da aprovação do Programa Mover, ainda nos parece dúbia a forma como se dará a fiscalização e quais medidas serão tomadas para garantir a eficácia dos estímulos fiscais voltadas à sustentabilidade de veículos. Como já destacado em outros artigos de nossa autoria, é necessário enfrentar o problema de infraestrutura no Brasil, bem como a falta de conexão entre políticas públicas e fiscais, que ainda é a “pedra no sapato” para se garantir uma indústria realmente voltada a meios de produção e, por consequência, ao verdadeiro consumo sustentável (aderência).
Por exemplo, a lei em questão não trouxe a solução ou o seu caminho para os atuais problemas de infraestrutura, como a falta de pontos de carregamento elétricos e a desigualdade social, em especial com relação ao poder de compra de carros elétricos ou híbridos.
Esses desafios pareciam começar a tomar as rédeas, ainda que de forma tímida, com a inclusão da alínea ‘c’ do inciso I do § 4º do artigo 13 do PLP, que previa a “instalação de unidades destinadas à infraestrutura de postos de abastecimento de GNL e outras fontes energéticas alternativas de baixa emissão de carbono”, dispositivo este que não foi incluído no texto da Lei nº 14.902/24, em razão de veto presidencial, sob o argumento de que concorreria com os limites globais do programa voltados à adoção de novas tecnologias de propulsão.
É possível perceber que a ideia é boa, mas é importante ter em mente que a função extrafiscal não pode servir como válvula de escape para problemas estruturais e sociais que merecem especial atenção, na medida em que funciona como instrumento temporário de tutela ambiental, estimulando ou inibindo determinadas condutas no ordenamento em prol dos valores constitucionais. Afinal, todos devem pagar tributos!!
Fato é que os incentivos fiscais devem ser estabelecidos em conjunto com políticas públicas voltadas à efetivação da sustentabilidade ambiental, trazendo aderência permanente à ação pretendida. Isso porque um programa de incentivo deve trazer consigo praticidade, reservando-se a uma única e exclusiva finalidade, sem desvios ou atenuações.
Agora é aguardar os próximos passos e avanços!!
Claudia Abrosio
é sócia no escritório Ayres Ribeiro Advogados, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP e especialista em Direito Tributário pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários).
Vitória Machado de Madureira
é advogada tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados e graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).