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Novo desafio no âmbito da litigiosidade repetitiva: abuso do direito de demandar
Três fases do acesso à Justiça
Na segunda metade do século 20, uma preocupação dos juristas era a falta de acesso à Justiça, pois uma considerável parcela da população permanecia à margem do Judiciário, tendo seus direitos constantemente lesados, sem proteção ou reparação [1].
No Brasil, especialmente com a promulgação da Constituição de 1988, o acesso à Justiça foi substancialmente ampliado. Sem desconsiderar que ainda há muito a ser aprimorado em termos de efetividade e celeridade na prestação jurisdicional, podemos dizer que o almejado acesso à justiça ocorreu e a consequência foi uma explosão de demandas.
Portanto, veio o acesso e, com ele, um outro problema: era preciso dar solução, a tempo e modo adequados, às múltiplas e repetidas demandas que passaram a desembocar no Judiciário diariamente.
Começou-se, então, a pensar em instrumentos para solução dos litígios massificados, cabendo-nos, neste curto espaço, apenas exemplificá-los. Veio, em 1990, o Código de Defesa do Consumidor, que possibilitou a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos.
A Emenda Constitucional nº 45/2004 trouxe a repercussão geral, que, além de ser um filtro de acesso ao Supremo Tribunal Federal, tornou-se um meio para ditar soluções uniformes para casos que se repetiam em todo o território nacional. Um outro passo foi dado em 2008, com a inclusão, pela Lei 11.672/2008, da sistemática de recursos repetitivos no CPC/73. O CPC/2015 consolidou um sistema de casos repetitivos e precedentes vinculantes.
Todavia, antes pudéssemos afirmar que estava efetivamente solucionado o problema do elevado número de demandas que o acesso à justiça gerou, eis que já nos vemos diante de um outro dilema.
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Retrato da litigância predatória
O novo desafio é lidar com o excesso de demandas ilegítimas, fruto de abuso do direito de demandar (ou abuso do direito de ação). O fenômeno tem sido chamado de litigância predatória.
Ou seja, hoje o Judiciário brasileiro enfrenta um problema de duas facetas: de um lado, há uma enorme quantidade de demandas legítimas, que pedem solução adequada e tempestiva; do outro, milhares de demandas ilegítimas, que precisam ser identificadas e obstadas, sob pena de se atravancar o primeiro desafio.
Os tribunais estão reagindo rapidamente e, por meio de centros de inteligência, têm sido capazes de identificar esse comportamento abusivo – das partes e dos advogados.
Os dados são alarmantes. O Relatório do Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede ) do TJ-SP para o biênio 2022/2023, por exemplo, identificou a atuação de um grupo de advogados na distribuição de mais de 50 mil ações padronizadas, com inúmeras irregularidades, como o ajuizamento sem o conhecimento do autor, omissão ou alteração de verdade de fatos e o uso de documentos falsos [2].
Os monitoramentos realizados pelo Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (CITJMG) apontam que os processos relacionados à litigância predatória equivalem a até 30% da movimentação processual [3]. É o desperdício de 1/3 do tempo e dos recursos empregados na prestação jurisdicional.
O fenômeno não se limita às hipóteses em que há a prática de atos processuais que configuram litigância de má-fé, tipificados no artigo 80 do CPC.
O abuso do direito de ação guarda a sutileza de aparente licitude, mas, no fundo, trata-se de demandas frívolas, sem litigiosidade real, ajuizadas com objetivos que não são obter a tutela de um direito [4]. Como já disse a ministra Nancy Andrighi, “o abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde” [5].
E os sinais do abuso são variados:
- petições genéricas e sem a mínima comprovação documental;
- ajuizamento de ações repetidas contra grandes companhias, no simples intuito de obter alguma vantagem econômica;
- fragmentação injustificada de causas de pedir, objetivando maximizar ganhos e outras vantagens;
- propositura da mesma demanda em juízos diversos para posterior escolha do foro mais conveniente (forum shopping);
- ajuizamento de ações fora domicílio do autor e em locais sem nenhuma ligação com a origem do litígio;
- utilização de documentos falsos ou adulterados;
- uso da mesma procuração em vários processos;
- omissão quanto à ocorrência de litispendência ou existência de coisa julgada.
Geralmente, a petição inicial vem com pedido de exibição de documentos, inversão do ônus da prova e outros requerimentos, como o propósito dificultar a defesa do réu.
A característica essencial dessas demandas é o desvio de finalidade: o objetivo é obter alguma vantagem, sob o beneplácito do Poder Judiciário, mas não obter a tutela de direitos [6].
As consequências são nefastas na esfera privada e na pública. Na primeira, as grandes companhias são as principais vítimas, pois têm sido bombardeadas de demandas e requerimentos, que resultam em alto custo de gerenciamento e prejuízos, no caso de condenações. Na esfera pública, o próprio Poder Judiciário é a presa, o que gera entraves na entrega da prestação jurisdicional àqueles que dela efetivamente precisam.
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E esse é o ponto fundamental: o abuso do direito de demandar obstaculiza o acesso à justiça do cidadão que não abusa do seu direito. Em razão do abuso perpetrado de forma reiterada, por muitos, a prestação jurisdicional tem sido mais lenta e menos efetiva, o que é razão suficiente para que todos os esforços sejam vertidos à repressão da litigância predatória.
Em boa hora, portanto, o Superior Tribunal de Justiça está examinando o Tema Repetitivo nº 1.198 [7]. Dali sairão importantes balizas e direcionamentos para os magistrados do país no que toca às possíveis providências a serem tomadas para refrear a litigância predatória. A reação é bem-vinda, pois o que não se pode admitir é que nosso Poder Judiciário seja vitimado pelo abuso do direito de demandar.
Justamente atento às repercussões da litigância predatória, o Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe) promoverá o Fórum Impactos Econômicos e Sociais dos Litígios de Massa [8] em Lisboa, nos dias 28 e 29 de novembro. O evento reunirá especialistas internacionais para discutir temas relacionados com a litigância de massa no Brasil e no exterior, como o forum shopping, os instrumentos judiciais disponíveis para tratamento dos litígios de massa, as soluções consensuais que podem ser aplicadas aos conflitos de massa, o financiamento dos custos processuais de litígios por terceiros e os desafios enfrentados pelos diferentes setores econômicos.
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[1] “A justiça, como outros bens no sistema laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva.” (CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 9).
[2] https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=151470
[3]https://www.tjmg.jus.br/data/files/49/80/E5/70/DF212810B8EE0B185ECB08A8/NT_01_2022%20_1_%20_1_.pdf
[4] A doutrina já vem fazendo a distinção das espécies de abuso: demandas ou condutas fraudulentas; demandas temerárias; demandas frívolas; demandas procrastinatórias; assédio processual; sham litigation; spam processual. (FERRAZ, Taís Schilling. O tratamento das novas faces da litigiosidade: das espécies anômalas à litigância predatória. Revista de Processo, vol. 349, mar./2024, p. 727-758)
[5] REsp n. 1.817.845/MS, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 10/10/2019, DJe de 17/10/2019.
[6] “(…) o exercício do direito de ação segundo à boa-fé exige do autor que a sua atuação em juízo se dê em busca de um fim legítimo e admissível para o direito, que seus atos praticados sejam coerentes entre si e justifiquem a obtenção desse fim e que eles não impeçam ou obstaculizem o exercício do direito de defesa do seu adversário.” (LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Abuso do Processo. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2024, p. 313.)
[7] Eis a questão afetada a julgamento: “Possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários.”
[8] Pré-inscrições gratuitas em https://forumbrasileuropa.org/impactos-economicos-e-sociais-dos-litigios-de-massa/
Eduardo Maneira
é professor titular de Direito Tributário da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, doutor em Direito pela UFMG, coordenador de Direito Tributário da Escola Superior da Advocacia (ESA) e sócio fundador do Maneira Advogados.
Michel Hernane Noronha Pires
é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP, professor de cursos de especialização da PUC-SP e da PUC-Minas, membro de Instituto Brasileiro de Direito Processual (IPBP) e sócio do Maneira Advogados.