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Médicos e farmácias criam mercado paralelo de Mounjaro; ‘Crime sanitário’, dizem especialistas

13 de maio, 2025

Por meio de “protocolos de emagrecimento”, clínicas oferecem produtos manipulados e contrabandeados; caso expõe descompasso entre o interesse pelas canetas injetáveis e a capacidade de fiscalização

Foto: Raimond Spekking

Por Victória Ribeiro

Mesmo antes do lançamento oficial no Brasil, o Mounjaro— indicado para diabetes tipo 2 e usado off label para o tratamento da obesidade — já movimenta um mercado paralelo que conecta clínicas médicas e estéticas a farmácias de manipulação.

Nas redes sociais, proliferam os chamados “protocolos de emagrecimento”, que prometem versões manipuladas da tirzepatida com eficácia supostamente igual — ou até superior — à do medicamento original. Alguns pacotes incluem canetas injetáveis anunciadas como “originais”, que entram no País por contrabando, sem controle sanitário.

No caso da manipulação, as clínicas alegam utilizar o mesmo princípio ativo do Mounjaro, a tirzepatida, “com 99% de pureza”. De acordo com os atendentes, o insumo seria importado por farmácias de manipulação e, então, repassado às clínicas. No entanto, não há qualquer transparência sobre a origem do produto, quem são os fornecedores ou documentos que comprovem qualidade.

Além disso, a suposta tirzepatida é diluída em uma substância descrita como “diluente especial” — cuja composição não é divulgada — e acondicionada em ampolas com concentrações que variam entre 30 mg e 60 mg, o que representa até quatro vezes a concentração máxima do medicamento original.

Conforme apurou o Estadão, que conversou com cerca de 30 clínicas — os protocolos são vendidos em pacotes fechados, que variam de R$ 3 mil a R$ 10 mil. Ou seja, até 4 vezes mais que o preço estimado do Mounjaro quando chegar ao mercado nacional. O valor costuma ser justificado pela promessa de uma “experiência completa”: além de uma única ampola do manipulado, inclui a aplicação das doses fracionadas na clínica, acompanhamento nutricional, procedimentos estéticos, e por aí. Em uma das ofertas analisadas, o protocolo incluía injeções de cafeína “desenvolvidas pelo próprio médico” para potencializar o emagrecimento, algo sem respaldo científico ou autorização para uso injetável.

Outro ponto que chama a atenção é o controle da distribuição: os medicamentos manipulados são fornecidos exclusivamente para as clínicas, impedindo a compra direta em farmácias. Além disso, não há exigência de um diagnóstico formal de diabetes ou obesidade. Pessoas magras, em busca de resultados estéticos rápidos, também são incentivadas a iniciar o “tratamento”.

Os médicos e outros profissionais envolvidos na promoção dos produtos costumam ser influencers, alguns com milhões de seguidores. Muitos deles também trabalham com outros métodos controversos, como “chip da beleza” e soroterapia, e se dizem especialistas em emagrecimento e longevidade, embora não possuam qualquer especialidade registrada.

Zonas cinzentas da regulação

Na opinião de Claudio Maierovitch, médico sanitarista da Fiocruz e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de um interesse altamente comercial, existe uma engrenagem operando em zonas cinzentas da regulação. “É um abuso das medidas judiciais e das brechas legais.”

Um exemplo, afirma Maierovitch, está na diferença de exigências entre a indústria farmacêutica e as farmácias de manipulação. Enquanto as primeiras precisam cumprir uma série de etapas rigorosas para colocar um novo medicamento no mercado, as segundas seguem regras distintas. Desde que exista uma receita médica individual, não há obrigação legal de utilizar insumos pré-qualificados pelo órgão regulador.

Pode parecer uma estratégia arriscada, mas isso ocorre porque a função das farmácias de manipulação é diferente. Elas existem justamente para atender necessidades específicas de pacientes que não se adaptam aos medicamentos produzidos pela indústria.

“Um exemplo legítimo de manipulação seria quando uma criança não consegue engolir comprimidos e o médico prescreve o mesmo princípio ativo em solução líquida. Isso é uma exceção”, explica o endocrinologista Clayton Macedo, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem). “Mas o que temos visto é um desvio dessa lógica: algumas farmácias passaram a produzir em larga escala e, em vez de complementar a oferta da indústria, estão competindo com ela sem ao menos ter estrutura para esse tipo de produção.”

Da China às farmácias de manipulação

Na prática, os insumos usados por farmácias de manipulação entram no País após liberação da Receita Federal, com base em documentos fornecidos pelas empresas importadoras. Se tudo estiver “ok” no papel, o insumo é liberado. O ponto crítico é que a Anvisa não faz análises laboratoriais para confirmar se o que foi declarado condiz com o que está sendo entregue. Nem mesmo as vigilâncias locais fazem essa verificação: sua atuação se limita à análise da documentação.

“Essa flexibilidade abre muitas brechas. São tantas camadas que não dá para cravar se é uma prática legal ou ilegal. Mas é, no mínimo, suspeita”, alerta o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa.

Esse imbróglio envolve também o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Conselho Federal de Farmácia (CFF), que parecem ter opiniões divergentes. O CFM é taxativo ao afirmar que a tirzepatida não pode ser manipulada e alerta para risco sanitário. “Quando clínicas oferecem ampolas padronizadas e vendem, por exemplo, tratamentos estéticos, isso pode configurar infração sanitária e violar o Código de Ética”, diz. Já o CFF defende que a manipulação é possível desde que exista prescrição individualizada e a farmácia esteja tecnicamente regularizada.

Nesse cenário, o mercado segue em expansão. Dados da Receita Federal mostram que, entre 2023 e 2025, foram importados mais de 30 kg de semaglutida — princípio ativo do Ozempic — e quase 22 kg de tirzepatida. Para efeito de comparação, basta lembrar que uma ampola com 60 mg costuma ser fracionada em 12 aplicações de 5 mg, dose semanal usada em muitos protocolos. Com esse cálculo, o volume importado seria suficiente para manipular cerca de 6 milhões de doses de “semaglutida” e 4,4 milhões de doses de “tirzepatida”.

Vale ressaltar, contudo, que essa é apenas uma estimativa — afinal, nem todas as clínicas operam da mesma forma. Algumas, por exemplo, aplicam doses maiores, como 15 mg divididas em quatro aplicações.

Segundo a Anvisa, os principais países das substâncias são Estados Unidos China. A agência, no entanto, afirma que os nomes das empresas fornecedoras não podem ser divulgados por se tratar de informação protegida por sigilo.

“O que está por trás disso é simples: dinheiro. Estamos falando de um mercado extremamente lucrativo”, opina o endocrinologista Alexandre Hohl, diretor da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso). “Isso fica evidente quando clínicas direcionam os pedidos para uma única farmácia, com dinheiro provavelmente circulando entre as duas pontas. Nesse contexto, também estamos diante de uma infração ao código de ética dos dois lados.”

Da falsificação ao crime hediondo

O aspecto jurídico é outro ponto crítico. Tanto a semaglutida quanto a tirzepatida ainda estão protegidas por patentes das farmacêuticas Novo Nordisk e Eli Lilly, respectivamente. Esse direito, conforme explica o advogado Gustavo Kloh, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), garante ao titular a exclusividade de explorar comercialmente a substância. Isso significa que outros fabricantes não podem produzir, vender ou mesmo utilizar os compostos sem autorização.

Em nota, a Novo Nordisk afirma que “não vende semaglutida para nenhuma entidade com finalidade de manipulação, e que os produtos manipulados com ‘semaglutida’ não oferecem as mesmas garantias de segurança, qualidade e eficácia”. Já a Eli Lilly declara ser a única fornecedora legal de tirzepatida e diz que não distribui o composto a farmácias de manipulação, spas médicos, centros de bem-estar, lojas online ou outros fabricantes.

“Esses produtos podem ser provenientes de fontes locais ou estrangeiras ilícitas e perigosas, frequentemente fabricados em instalações não registradas, sem inspeção de agências reguladoras e fora dos padrões de qualidade e boas práticas de fabricação”, ressalta a farmacêutica, acrescentando que há processos judiciais em andamento no Brasil e no exterior para tratar da manipulação irregular.

De acordo com a advogada Beatriz Alaia Colin, especialista em direito penal econômico e compliance pela FGV, caso fique comprovado que os produtos manipulados não possuem a mesma qualidade e pureza dos medicamentos originais, a prática pode configurar o crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, previsto no Código Penal e classificado como hediondo. 

Delivery e contrabando

Além das fórmulas manipuladas, alguns “protocolos de emagrecimento” oferecem versões supostamente originais de Ozempic e Mounjaro. Em conversas com atendentes, não é raro ouvir que os produtos são importados “em grandes quantidades” — algo que muitas vezes vem acompanhado de fotos. Em uma delas, uma caneta de Mounjaro é exibida em primeiro plano, com uma geladeira cheia de outras unidades ao fundo. No Instagram, também é comum encontrar médicos, esteticistas e nutricionistas exibindo grandes quantidades dos medicamentos.

Há ainda casos em que os profissionais fazem consultas online e se comprometem a enviar o produto — que exige refrigeração rigorosa — pelos Correios. Em uma clínica específica, a médica afirma estar no exterior, mas propõe que o paciente receba o medicamento pessoalmente de um “fornecedor” encarregado de fazer entregas em várias cidades do Brasil. Na maioria das vezes, as clínicas se recusam a fornecer nota fiscal.

Em todas essas situações há violação das regras sanitárias. Segundo a Anvisa, nem médicos nem clínicas podem importar Mounjaro ou Ozempic para uso em pacientes. “Esses medicamentos só podem ser importados por pessoa física, para uso próprio. A importação precisa ser feita pelo paciente e em seu nome”, esclarece o órgão. No caso do produto da Eli Lilly, cuja comercialização oficial no Brasil começa na quinta-feira, 15, a agência ressalta que “nem farmácias ou hospitais possuem o produto regularizado”.

“Falando de forma direta: é um produto de origem criminosa. Ou foi contrabandeado, ou é falsificado, ou veio de uma importação irregular de matéria-prima, o que também configura contrabando, só que da substância base”, explica Maierovitch. “Em todos os casos, quem paga pelo risco é a pessoa que está utilizando o produto.”

Procurada, a Polícia Federal informou que vem monitorando casos de contrabando de medicamentos para emagrecimento. Apenas em 2024, foram apreendidas mais de 420 mil unidades contendo, ou alegando conter, substâncias como tirzepatida e semaglutida. A lista inclui Ozempic, Mounjaro e supostos genéricos com nomes como “semaglix”, “semavic”, “monja” e “fitaro”. Somente entre janeiro e início de abril de 2025, foram quase 53 mil unidades apreendidas.

Vale ressaltar, no entanto, que esses números provavelmente são ainda maiores. De acordo com a PF, não há uma padronização no preenchimento dos registros. Por exemplo, há casos em que “uma caixa de Mounjaro em grandes quantidades” é registrada simplesmente como “uma caixa”, sem detalhamento das unidades.

Quais os possíveis riscos?

Para o presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Renato Porto, a situação é “uma sucessão de descalabros com a saúde pública”. E os problemas começam na base: tirzepatida e semaglutida não são simples de manipular. São moléculas grandes e complexas, que exigem condições muito específicas. Nesse cenário, a estrutura das farmácias de manipulação pesa contra.

Em seguida, vem a procedência dos insumos. Não há garantia de que a substância vendida como contendo tirzepatida, de fato, apresente tirzepatida. O mesmo vale para a semaglutida, seja manipulada ou nas canetas importadas. “Pode ser qualquer coisa, desde um placebo como soro fisiológico até compostos que provocam emagrecimento, mas que não são a molécula original e nunca foram estudados”, explica Hohl.

Esse tipo de fraude já vem sendo documentada. Nos EUA, autoridades apreenderam canetas vendidas como tirzepatida que continham insulina. No Brasil, a própria Eli Lilly analisou amostras de produtos manipulados rotulados como tirzepatida e encontrou desde presença de bactérias e níveis altos de impurezas até cores estranhas (como líquido rosa, quando o correto seria incolor). “Em pelo menos um caso o produto nada mais era do que álcool”, diz a farmacêutica.

Não por acaso, a Anvisa já recebeu relatos de efeitos colaterais. Entre 2023 e 2024, foram 43 notificações. Entre as principais queixas aparece “adulteração do produto”, além de intoxicações, distúrbios gastrointestinais e do sistema nervoso e dois casos fatais.

Há ainda o problema das ‘canetas’ importadas ilegalmente, transportados junto ao corpo, e das remessas entregues por “fornecedores” ou enviadas pelos Correios. Em nenhuma dessas situações, as substâncias são mantidas na temperatura adequada.

Além disso, o uso fora da recomendação, como para fins estéticos, também pode render efeitos negativos. “A população incluída nos estudos para a aprovação do Mounjaro no Brasil é, até agora, composta por pessoas com diabetes tipo 2”, diz Macedo. “Ou seja, a pessoa dentro do peso e sem diabetes não foi estudada. Qual é o risco? Não se sabe.”

Ação coordenada

Para Maierovitch, a lógica do mercado paralelo é parecida com a do comércio de drogas ilícitas. “Tem gente querendo comprar, tem gente disposta a vender — e o Estado nem sempre consegue impedir que essa transação aconteça de forma rápida e efetiva.”

E a movimentação é grande. Em vídeos que circulam nas redes sociais, médicos falam abertamente sobre como manter ou aumentar o faturamento com os protocolos mesmo após a chegada do Mounjaro ao Brasil. “Já temos tudo planejado: a gente converte duas pessoas em uma única consulta e mantemos o acompanhamento, não só a medicação semanal”, diz um profissional com mais de 40 mil seguidores.

Embora tenha sido questionada, a Anvisa não respondeu se a manipulação desses medicamentos é legal ou não. No entanto, a agência compartilhou dados sobre apreensões. Em 2024 e 2025, foram registrados apenas dois casos de apreensão de tirzepatida manipulada. Quando indagado sobre o número reduzido, o órgão explicou que a fiscalização das farmácias não é de sua responsabilidade direta, mas sim das vigilâncias sanitárias estaduais e municipais.

Na prática, porém, o sistema parece desarticulado. O Estadão procurou a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo em busca de informações, mas a pasta alegou que o tema é atribuição da Anvisa.

“A quantidade de clínicas promovendo esses protocolos nas redes sociais mostra que o problema já ultrapassou a esfera municipal. Continua sendo uma responsabilidade local, mas caberia à Anvisa liderar uma ação coordenada com Estados e municípios frente a um cenário que claramente se disseminou”, opina Maierovitch.

Porto também destaca a necessidade de reforçar o controle sobre os medicamentos e nas fronteiras. “O primeiro passo é garantir que os manipulados sigam todas as normas de segurança, eficácia e qualidade. A norma atual não está dando conta”, diz. Ele destaca que a manipulação desses medicamentos já é proibida na África do Sul, na Austrália e nos EUA.

“No fim das contas, talvez o Brasil esteja apenas trocando de fórmula sem mudar a lógica. Durante décadas, aprendemos a engordar rápido com o fast food. Agora, tentamos emagrecer da mesma forma: com atalhos e formas questionáveis”, diz Maierovitch. “O que se vê é uma negligência em relação à saúde pública, em que a busca por lucro se sobrepõe ao compromisso com o bem-estar dos pacientes”, complementa Hohl.

Ao ser questionado sobre possíveis sanções aos médicos envolvidos, o CFM afirmou que, por atuar como instância judicante recursal, não comenta casos concretos. Já o Ministério Público informou que não encontrou procedimentos públicos relacionados ao caso, mas ponderou que, se houver sigilo, a consulta fica impossibilitada.

https://www.estadao.com.br/saude/medicos-e-farmacias-criam-mercado-paralelo-de-mounjaro-crime-sanitario-dizem-especialistas/

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