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Mau uso de inteligência artificial em petição condena por má-fé e intuito protelatório
Decisão proferida na 3ª Vara do Trabalho de Mogi das Cruzes-SP rejeitou embargos de declaração e multou empresa de segurança e limpeza por propósito protelatório e litigância de má-fé. Para o julgador, ficou claro o mau uso da inteligência artificial na elaboração da petição, redigida de forma genérica, sem revisão nem filtragem crítica pelo advogado da reclamada, o que congestionou o andamento processual.
Com o objetivo de apontar supostos vícios na sentença, o profissional do direito utilizou linguagem padronizada e tratou os fatos de forma superficial no pedido, segundo o juízo. Também não apresentou a personalização necessária à demonstração de erro, omissão, contradição ou obscuridade, elementos essenciais para os embargos declaratórios. Por fim, valeu-se de premissas equivocadas nas alegações.
Nos embargos, o advogado argumentou que a sentença teria ignorado documentos que demonstravam a intermitência da prestação laboral e os períodos de inatividade do trabalhador, sem indicar, contudo, a qual documento se referia. Em outro trecho, apontou falta de provas quanto ao reconhecimento de justa causa patronal, ignorando o fato de que “os embargos declaratórios não se prestam à rediscussão de provas nem à reforma da decisão, devendo as partes atuar em colaboração com a rápida solução do processo, sem criar embaraços desnecessários”, diz a sentença de embargos.
Mais à frente, o texto da petição requereu compensação dos valores pagos a título de férias, descanso semanal remunerado (DSR), 13º proporcional e FGTS, sendo que não houve condenação em DSR. Por fim, os embargos questionaram reconhecimento de rescisão indireta “sem qualquer apreciação das razões de fato e de direito expostas na contestação, em evidente cerceamento do direito à ampla defesa […]”. A sentença de embargos, entretanto, ressaltou que o tema “rescisão indireta” sequer foi tratado na decisão original.
“Como se percebe, a IA não leu atentamente o processo, não conhece conceitos jurídicos específicos e não é capaz de analisar as peculiaridades do caso concreto, ignorando que temas secundários não são analisados justamente porque restaram prejudicados diante da rejeição expressa do tema principal”, afirmou o juiz Matheus de Lima Sampaio. Segundo ele, a utilização de ferramentas tecnológicas é benéfica para otimizar a atividade jurídica, desde que empregada com discernimento.
“Não se admite que o operador do Direito, valendo-se ou não de inteligência artificial, submeta ao Judiciário textos não revisados e que não se harmonizam com o caso concreto, ocupando indevidamente o tempo do juiz e do Poder Judiciário com expedientes superficiais, destituídos do rigor técnico e da profundidade analítica que a atividade jurídica exige”, concluiu o magistrado.
A multa aplicada foi de 2% do valor atualizado da causa pelo caráter protelatório da medida e de 5% por litigância de má-fé, com valores revertidos em favor da parte contrária.
Análise
Paulo Henrique Fernandes, Legal Ops Manager no Viseu Advogados, diz que “a decisão da 3ª Vara do Trabalho de Mogi das Cruzes, que rejeitou embargos de declaração e aplicou multa por litigância de má-fé em razão do mau uso de inteligência artificial em petição, representa um marco de reflexão para a advocacia atual. Mais do que uma condenação pontual, o caso pode ser entendido como um aviso sobre os limites da tecnologia quando empregada sem técnica e sem revisão e supervisão”.
Para ele, o caso demonstra que a IA, quando utilizada, por exemplo, para produzir peças processuais sem análise crítica, não só falha em seu objetivo de apoiar o advogado, como cria riscos adicionais: petições genéricas, desconectadas do processo concreto, com riscos de alucinação da IA e geração de dados inexistentes, como jurisprudências e doutrinas inventadas, que congestionam o Judiciário e comprometem a defesa do cliente. O resultado, como se viu, foi a aplicação de multas que poderiam ter sido facilmente evitadas com uma leitura atenta e uma filtragem profissional.
“Desde a faculdade, aprendemos que o Direito não se limita à reprodução de informações; exige interpretação, ponderação e contextualização. São justamente essas camadas de refinamento que diferenciam a atuação humana da simples automação. Sem revisão, o que deveria ser um ganho de produtividade se converte em um risco jurídico, reputacional e até ético”, ressalta
“As consequências não se restringem à multa aplicada. Há impactos mais profundos: a imagem do advogado perante magistrados e clientes, a credibilidade do escritório e a confiança do cliente no trabalho prestado. Em um mercado cada vez mais competitivo, reputação é ativo intangível valioso, e não pode ser colocado em xeque por um uso inadequado da tecnologia. Portanto, é imprescindível que os profissionais do Direito compreendam o papel da inteligência artificial: ferramenta de apoio, jamais substituta. Isso requer treinamento adequado, governança, protocolos de revisão, de segurança da informação e governança de dados, mas sobretudo, de senso de responsabilidade. O futuro da advocacia passa quase que obrigatoriamente pela tecnologia, mas o presente exige discernimento e boas práticas.”, conclui Fernandes.