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Mais que criminosos, Felca denunciou uma sociedade que vive de barbaridades

18 de agosto, 2025
Foto: reprodução

O Brasil está em polvorosa desde que Felipe Bressanim Pereira, o Felca, denunciou a pedofilia nas redes sociais em seu vídeo “Adultização”, publicado no dia 6. Mais do que bem-vindo, o movimento é essencial para resgatarmos uma sociedade civilizada, que proteja crianças e adolescentes. Mas corremos o risco de que o problema seja tratado de maneira superficial e -pior ainda- que acabe em uma escandalosa pizza.

O influenciador apontou os responsáveis mais evidentes, como personalidades digitais que exploram a erotização de crianças, os pedófilos que inundam as redes sociais e até pais e mães que, por ação, omissão ou ignorância, colocam os próprios filhos em risco. Mas essa situação também resulta de uma sociedade que, nos últimos 15 anos, se acostumou com todo tipo de barbaridade e até se beneficia delas.

O maior exemplo é a classe política. Apesar desses abusos contra os mais jovens serem conhecidos e debatidos há anos, bastou a comoção criada por Felca para o surgimento de dezenas de projetos de lei para combater esse delito. Porém mais grave ainda são os parlamentares que querem impedir que uma solução avance.

É o caso também das plataformas digitais, que apresentam um discurso de proteção a crianças e adolescentes, mas que se beneficiam largamente dessas práticas criminosas, que acontecem de maneira explícita em suas páginas, em perfis com milhões de seguidores. Em vez de combaterem a prática, elas desmantelaram suas próprias estruturas de moderação de conteúdo e de proteção. Em seu lugar, montaram poderosos esforços de lobby para convencer políticos a defenderem seus interesses. Não satisfeitas, associaram-se ao presidente americano, Donald Trump, para usar o poder dos EUA para achacar países que buscam soluções.

Além de combater os criminosos óbvios, a sociedade precisa, portanto, enquadrar aqueles que sustentam a estrutura para essas atrocidades.

O oportunismo faz parte do jogo político. Diante do vídeo do Felca, parlamentares já apresentaram mais de 30 propostas para proteger crianças e adolescentes nas redes sociais, proibindo a monetização de conteúdos de menores, criminalizando a “adultização” e a sexualização infantil, responsabilizando pais e plataformas digitais e bloqueando perfis de infratores. Uma CPI sobre o assunto também pode acontecer.

Da mesma forma, apesar da urgência do tema, um grupo de parlamentares se aproveita destes holofotes para afirmar suas pautas de que tudo não passa de um complô do governo para calar a oposição, e que o objetivo é limitar a liberdade de expressão.

“Na lei brasileira, o Norte é o melhor interesse da criança e do adolescente”, afirma Marcelo Crespo, coordenador do curso de graduação de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Ele explica que, “em ambiente digital, o teste do melhor interesse implica zero sexualização, nada de humilhação, nada de exploração comercial desproporcional, mínima coleta de dados e rotina compatível com a idade”.

Mas passadas duas semanas, a Agência Lupa constatou que as redes sociais continuam promovendo conteúdos que erotizam crianças e atraem pedófilos. Em julho, já havia revelado que o Facebook e o Telegram permitem a venda de imagens criadas por inteligência artificial de influenciadoras nuas, incluindo menores de idade. Alguns anúncios prometem vídeos com “novinhas”, “incestos” e “conteúdo banido no Brasil”.

Em outubro de 2024, a organização americana Aliança para Combater o Crime Digital (ACCO, em inglês) divulgou um relatório que conclui que a Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, viola sistematicamente a Lei de Serviços Digitais europeia (DSA). Ela pede que as autoridades imponham sanções contra a empresa “por hospedar esse vasto ecossistema de infratores que compartilham conteúdo violador”.

“Essas plataformas assumem um papel ativo na formatação do ambiente informacional e, portanto, devem implementar medidas efetivas para evitar que sua infraestrutura seja utilizada para fins ilícitos ou prejudiciais”, explica Marcelo Cárgano, advogado especialista em direito digital e proteção de dados do escritório Abe Advogados. Segundo ele, “o STF considerou que os mesmos mecanismos tecnológicos usados para direcionar anúncios com alto grau de precisão poderiam ser aplicados para identificar, bloquear e remover rapidamente tais conteúdos”.

Hipocrisia online

Quando confrontadas com esses crimes em suas páginas, as big techs se defendem com um discurso padrão de que não toleram essas práticas e que removem esse tipo de conteúdo. Mas os fatos demonstram o contrário.

No dia 14, a Reuters divulgou uma análise de um documento interno da Meta que indica que sua inteligência artificial deliberadamente pode manter conversas românticas e sensuais com crianças e promover racismo e informações médicas incorretas. A dona do Facebook admitiu a veracidade do documento, mas disse que retirou a permissão para as conversas de teor sexual com crianças pela sua IA.

Só que esse é um problema recorrente. Em outubro de 2021, por exemplo, Frances Haugen, ex-gerente do setor de integridade cívica do Facebook, divulgou milhares de documentos internos da empresa que revelavam como a plataforma priorizava seus lucros frente a práticas que causavam danos à sociedade, à democracia e à saúde mental dos jovens.

Quando a sociedade falha ao encontrar mecanismos razoáveis para esses abusos, podem surgir medidas extremas. É o caso da lei australiana que sumariamente proíbe o uso de qualquer rede social por menores de 16 anos. Aprovada em novembro de 2024, entra plenamente em vigor em 10 de dezembro desse ano, determinando que as plataformas impeçam esse uso, sob pena de multas equivalentes a R$ 175 milhões.

O cinismo das big techs e a inoperância dos parlamentares podem levar a indesejados extremos como esse. Enquanto isso, vemos o governo americano atacando o Brasil, a União Europeia e outros países para proteger os interesses dessas empresas.

No final, caímos de novo no surrado debate de defesa da liberdade de expressão, usurpada para defender interesses inconfessáveis. O mesmo artigo da Constituição que a garante também veda o anonimato, pois ela não é absoluta.

Mecanismos que garantem outros direitos individuais não ameaçam a liberdade de expressão, e sim criam uma sociedade segura, para uma coexistência pacífica e saudável. Posicionar-se contra isso demonstra uma profunda distorção cívica. O debate criado por Felca nos dá mais uma chance de fazermos o que é certo.

https://www.estadao.com.br/brasil/macaco-eletrico/mais-que-criminosos-felca-denunciou-uma-sociedade-que-vive-de-barbaridades/

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