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Litigância predatória do futuro: o lado sombrio da IA no Direito

14 de outubro, 2025

Gustavo Viseu*

A inteligência artificial vem sendo celebrada como solução para a sobrecarga da Justiça. Ganha-se eficiência no preparo de petições, maior precisão na busca de precedentes, automação de rotinas que antes consumiam dias de trabalho. Mas, como toda tecnologia poderosa, ela carrega um lado sombrio. O mesmo instrumento capaz de reduzir custos e acelerar processos pode ser usado para amplificar disputas artificiais e transformar o acesso em arma.

Se a litigância predatória tradicional já é conhecida — milhares de ações repetitivas, muitas vezes frágeis, apresentadas como estratégia de pressão —, o futuro traz um cenário ainda mais preocupante: sua versão automatizada. A diferença não está apenas na qualidade dos argumentos, mas na escala. Uma IA pode gerar centenas de petições em minutos, replicar teses infundadas, inventar citações jurídicas e explorar brechas processuais em uma velocidade inalcançável pelo trabalho humano.

O resultado é um “spam jurídico” com potencial de inundar os tribunais e de transferir ao adversário o custo do excesso artificial. E aqui surge o maior impacto: empresas e departamentos jurídicos se tornam alvos diretos dessa avalanche.

Esse risco não parte do zero. No Brasil, já existem indícios concretos de que a litigância predatória se tornou um problema estrutural. Levantamentos indicam que até 30% das ações em contratos bancários e de consumo podem ser fabricadas apenas para explorar o sistema. Em alguns Estados, advogados foram identificados como responsáveis por dezenas de milhares de ações individuais, sempre com pedidos padronizados, o que levou o CNJ a editar, em 2024, a Recomendação nº 159, criando mecanismos de monitoramento nacional. O próprio uso da expressão “litigância predatória” em decisões judiciais cresceu de forma exponencial, mais de 4 mil vezes em nove anos, sinal de que o Judiciário passou a tratar o tema como distorção sistêmica e não como exceção.

Disputas de baixo valor, mas em grande volume, podem consumir tempo e energia preciosos. O problema não está apenas nos honorários, mas na sobrecarga de sistemas internos, na necessidade de revisão minuciosa de cada processo e na perda de agilidade para lidar com casos realmente relevantes. Essa pressão abre espaço para erros, acordos desvantajosos e desvio de foco em questões estratégicas.

O simples acúmulo de processos, mesmo quando infundados, pode ainda gerar repercussões reputacionais. Investidores, reguladores e o mercado não analisam apenas o mérito de cada ação, mas também o retrato de uma empresa constantemente envolvida em disputas.

Esse risco já deixou de ser apenas uma hipótese acadêmica. O crescimento exponencial da litigância predatória nos últimos anos mostra que o abuso da judicialização já opera em escala estrutural, mesmo sem o apoio pleno da tecnologia. A chegada da inteligência artificial não cria o problema, mas atua como um acelerador poderoso de distorções que já estavam em curso. O que antes era um modelo de negócio baseado no excesso humano tende a se tornar uma engrenagem artificial capaz de levar o sistema de Justiça a um novo patamar de estresse.

A reação exigirá novas estratégias. Tribunais precisarão de filtros inteligentes para identificar padrões de litigância predatória e bloquear disputas fabricadas. Penalidades exemplares terão de ser aplicadas para coibir o uso malicioso da tecnologia. Escritórios e departamentos jurídicos terão de investir não apenas em IA para produzir, mas também para se defender, criando barreiras contra o excesso artificial.

Ainda será necessário evoluir a governança de litígios. O contencioso deixará de ser apenas reação para se tornar parte do planejamento central de riscos empresariais. Empresas que não tratarem o tema como estratégico ficarão expostas.

A inteligência artificial não é boa ou má por natureza. Ela é uma ferramenta. O desafio será garantir que, no campo jurídico, a automação sirva à justiça e não à distorção. O futuro da advocacia, das empresas e de seus departamentos jurídicos dependerá da capacidade de identificar, coibir e responsabilizar os novos agentes da litigância predatória — sejam eles humanos ou artificiais.

*Gustavo Viseu é managing partner do Viseu Advogados.

https://lexlegal.com.br/litigancia-predatoria-do-futuro-o-lado-sombrio-da-ia-no-direito/

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