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Decifra voto de ministro e custa R$ 5 por ação: conheça Maria, a IA do STF
Helton Simões Gomes
Colunista de Tilt
(Imagem: Divulgação/STF)
Em cerimônia na segunda (16), o presidente do STF (Supremo Tribunal de Justiça), o ministro Luiz Barroso, fez questão de anunciar em pessoa a chegada de Maria, ainda que ela não seja nenhuma autoridade institucional ou uma sumidade jurídica que valha a pompa e circunstância.
Afinal, Maria é um programa de computador que catapulta a mais alta corte do Brasil para a era da inteligência artificial generativa, a tecnologia que assombrou o mundo por produzir conteúdo tão bem quanto um ser humano.
Maria é um complexo arranjo tecnológico, pois, ao mesmo tempo, é “prima do ChatGPT” e depende de uma incomum união das rivais Google e Microsoft. E já mostrou trabalho: ela já tirou da fila os 5 mil recursos que aguardavam relatório no STF. A eficiência não sai de graça, porém. Cada vez que é acionada custa R$ 5.
O que rolou?
Maria não é nome no RG, mas sigla para (Módulo de Apoio para Redação com Inteligência Artificial). Por enquanto:
- Ela desempenha três funções no STF. Uma é obrigatória e automática: elaborar relatórios para todos os recursos (extraordinários e extraordinários de agravo). E…
- … As outras duas são opcionais, pois dependem da ação do servidor ou do juiz: analisar as reclamações que chegam ao tribunal e decifrar os votos dos ministros para escrever as ementas (síntese das decisões). Só que…
- … Nem todo voto será lido pela Maria antes de ser divulgado ao público. Ficarão de fora os processos que correm em segredo de Justiça, porque…
- …Os desenvolvedores acharam melhor Maria não lidar com informações sigilosas, pois a exposição de conteúdo sensível poderia esbarrar na LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Aliás…
- … Maria já está no futuro: ela foi desenhada para estar em linha com o Marco da Inteligência Artificial, que nem é lei ainda -aprovado no Senado, carece de análise da Câmara. Quer dizer que…
- … Para ser classificada como ferramenta de IA de baixo risco, ela não avança sinais vermelhos e perigosos, como calcular penas ou fazer inferências em processos criminais. Faz bem: os sistemas de risco excessivo –tipo armas autônomas– são proibidos, e os de alto risco –como veículos autônomos e os de avaliação de alunos– sofrem um escrutínio maior. Na prática…
- … Maria não tem cara nem é um chatbot, como outras IAs. É um botão no sistema processual do STF. Assim, ninguém precisa abrir outro sistema. Tudo o que ela faz é integrado às outras atividades de servidores e ministros. De todo modo, nada é publicado sem o Ok de um ser humano.
Não vale só para a IA generativa, mas para qualquer tecnologia. A gente até pode terceirizar a tarefa para uma tecnologia, mas a responsabilidade é das pessoas
Natacha Moraes de Oliveira, Secretária de tecnologia da informação do STF
Por que é importante?
Quando o ministro Barroso anunciou há um ano que usaria IA generativa para fazer resumos de textos jurídicos, a ideia foi criticada. Teve gente que dizia bastar baixar algum sistema da internet e pronto.
A coisa não se mostrou tão trivial assim. Para uma IA generativa fazer um resumo, ela pega fatos que julgou mais relevantes, mas normalmente exclui alguns, inclusive fatos objetivos, como citação de uma lei ou uma regulamentação
Natacha Moraes Oliveira
A solução não foi trivial. Por baixo do capô da IA do STF, há uma colcha de retalhos de sistemas. Para os relatórios dos recursos, ela recorre ao GPT-4o, modelo de linguagem da OpenAI, e que roda na Azure, nuvem da Microsoft. Para ementas e reclamações, usa o Gemini, do Google.
Eles são acionados de forma bem diferente da que nós usuários nos habituamos. Para interagir com a Maria, não dá para escrever um prompt, como no caso do ChatGPT.
Ela usa o que acadêmicos chamam de “cadeia de prompt”, que são comandos enfileirados para executar cada fluxo de uma tarefa, diz André Franco, sócio da EloGroup, a empresa que venceu o chamamento do STF. No caso da Maria, são oito dessas cadeias, cada uma composta por seis a oito longos prompts. É isso que faz a Maria saber de cabeça:
- quais documentos judiciais deve ler -uma só ação possui vários ofícios e outras tantas decisões;
- as análises a serem feitas sobre cada texto;
- as informações que precisam ser extraídas deles e;
- como organizar tudo em encadeamento lógico que faça sentido aos olhos de seres humanos.
“A gente fez um mergulho no fluxo processual para entender como esse processo chega ao STF, por quais instâncias e órgãos do judiciário tramitava e quais documentos são gerados nesse curso. Só a partir daí fez uso da inteligência artificial generativa”
André Franco, sócio da EloGroup
Não é bem assim, mas tá quase lá
É esse arranjo complexo que faz a IA do STF alucinar pouco, ou seja, não escrever bobagens sem sentido. Mas esse DNA não sai de graça. A cada vez que é acionada, Maria custa cerca de R$ 5, conta Oliveira. Já foi mais custoso. Durante os testes, era R$ 8 a cada ação. O plano, diz Oliveira, é reduzir a cifra ainda mais.
Como os documentos ficam no sistema do STF e não em um chatbot, os modelos de IA não precisam ser acionados a toda hora para uma nova edição ou checagem de detalhes. Isso diminui o gasto, o que certamente deve ter frustrado as empresas envolvidas.
Durante os testes, a Microsoft, parceira da EloGroup, cobriu os custos. Agora, eles serão absorvidos pelo contrato de prestação de serviços do STF com o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados).
A questão do gasto não é trivial. Como é um tribunal que serve como referência para os demais, o STF acaba ditando a tecnologia a ser adotada pelos demais.
O que é feito no Supremo vira referência para outros tribunais. É o mais importante tribunal do país, mas não tem um volume [de ações] muito significativo, de tal maneira que o consumo de tokens não seria um problema. Mas, quando a gente faz algo que outro tribunal possa utilizar, tem que se preocupar com isso. E era parte do nosso projeto desenvolver soluções economicamente viáveis
Natacha Moraes de Oliveira, secretária de tecnologia da informação do STF