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Até onde vai o poder fiscalizador no Direito do Consumidor?
Desafios da atuação ampliada de Procons e Senacon e a importância da governança jurídica para proteger o direito do consumidor e a segurança jurídica empresarial
Por Ricardo Motta
A ampliação da tutela administrativa nas relações de consumo tornou-se uma das principais frentes de atuação do poder público no ambiente de mercado. Ainda assim, persiste um fenômeno pouco enfrentado com a devida profundidade: o protagonismo crescente de órgãos como os Procons e a Senacon, que vêm adotando medidas de elevado impacto econômico, muitas vezes sem amparo legal específico, sem processo administrativo regular ou com fundamentações que extrapolam o escopo normativo que lhes é conferido.
Embora a proteção do consumidor seja um dever constitucional do Estado, sua execução deve observar os princípios que regem a Administração Pública, em especial a legalidade, a motivação, a razoabilidade, o contraditório e a ampla defesa. Em diversos casos, no entanto, esses princípios vêm sendo relativizados sob o argumento de tutela do interesse coletivo.
É crescente o número de casos em que empresas são notificadas por práticas classificadas como abusivas sem a devida caracterização jurídica do ato ou delimitação normativa da obrigação violada. Frequentemente, essas notificações vêm acompanhadas de exigências não previstas em lei, baseadas em entendimentos unilaterais do órgão notificante.
Esse alargamento interpretativo tem resultado na imposição de obrigações atípicas, medidas corretivas não regulamentadas e multas aplicadas com base em critérios opacos. O efeito prático é um ambiente de instabilidade regulatória que compromete a previsibilidade e a segurança jurídica, sobretudo para empresas expostas ao consumo de massa.
Há ainda a divergência entre os próprios órgãos de defesa do consumidor, gerando um cenário de insegurança jurídica federativa, com exigências distintas e, por vezes, conflitantes, emanadas por Procons municipais, estaduais e pela Senacon. A ausência de um modelo normativo claro e vinculante acentua o risco jurídico das companhias que atuam em escala nacional.
Diferentemente das empresas, que respondem objetivamente por danos causados a consumidores, os entes administrativos raramente são responsabilizados por efeitos negativos indevidos decorrentes de sua atuação. Na prática, inexiste um sistema eficaz de accountability sobre os órgãos de defesa do consumidor. O controle judicial, embora disponível, é moroso e depende de provocação da parte interessada. Já o controle interno, em muitos casos, mostra-se inoperante ou sujeito a interferências políticas e orçamentárias.
Essa assimetria expõe o setor empresarial a práticas estatais de viés sancionador, sem que haja a mesma exigência de conformidade aos limites legais por parte do Estado. O desequilíbrio compromete a lógica de freios e contrapesos que deve orientar a atuação administrativa.
Diante desse cenário, a atuação jurídica das empresas deve evoluir de uma postura reativa para uma abordagem estruturada de governança regulatória preventiva. Não se trata apenas de responder notificações, mas de construir uma política jurídica institucionalizada, com capacidade de interlocução técnica, resistência estratégica e incidência normativa.
Entre as medidas recomendáveis, destacam-se:
- Estabelecimento de fluxos internos para respostas técnicas qualificadas, com participação integrada do jurídico, compliance e áreas operacionais.
- Monitoramento contínuo da atuação normativa e administrativa dos órgãos reguladores, com identificação de riscos e emissão de pareceres preventivos.
- Reforço da interlocução institucional com entidades públicas, privilegiando espaços técnicos de diálogo antes da adoção de medidas formais.
- Judicialização estratégica em casos de excessos, com foco na contenção de abusos e formação de precedentes que limitem a atuação desproporcional do Estado.
Esse modelo de atuação não apenas protege a empresa em casos específicos, mas também contribui para a formação de um ambiente institucional mais estável, com definição mais clara dos limites da atuação estatal. É fundamental reafirmar que proteger o consumidor não significa afastar a legalidade. A segurança jurídica é valor estruturante para consumidores e fornecedores. Não há política pública eficaz sem previsibilidade, base normativa e responsabilidade institucional.
Quando órgãos administrativos ultrapassam seus limites legais, ainda que com finalidades legítimas, comprometem a credibilidade do sistema, abalam a confiança empresarial e geram passivos regulatórios de difícil administração. A construção de um ambiente regulatório equilibrado exige limites bem definidos, critérios objetivos e mecanismos efetivos de controle.
A atuação jurídica empresarial, nesse contexto, deve assumir papel de protagonismo. Defender a legalidade não é contrariar o interesse público, mas garanti-lo.
Ricardo Motta é sócio responsável pela área de relacionamento com o mercado em Viseu Advogados e membro do Comitê de Relações de Consumo do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac)
https://monitormercantil.com.br/ate-onde-vai-o-poder-fiscalizador-no-direito-do-consumidor/