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A validade de atos processuais praticados por inteligência artificial
Julio Garcia Morais*
A integração da Inteligência Artificial (IA) no sistema judiciário brasileiro representa mais uma revolução tecnológica que promete maior eficiência, celeridade e acessibilidade à Justiça. A primeira revolução tecnológica foi a própria digitalização da Justiça.
Desde a promulgação da Lei nº 11.419/2006, que instituiu o processo eletrônico, o Judiciário tem avançado na digitalização, culminando com o uso de ferramentas de IA para auxiliar em tarefas como análise de jurisprudência, redação de decisões e peças processuais e classificação de documentos. No entanto, surge a questão central: qual a validade jurídica dos atos processuais praticados por IA?
Essa indagação ganha relevância no contexto do Código de Processo Civil (CPC/2015) que enfatiza princípios como a cooperação, a boa-fé e a economia processual (arts. 4º a 6º), mas não prevê explicitamente o emprego de algoritmos e automação das decisões judiciais.
O debate sobre a validade desses atos envolve não apenas aspectos técnicos de informática ou processuais, mas éticos e constitucionais, garantindo que a automação não comprometa direitos fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF/1988) ou mesmo viole princípios como o do livre convencimento do Juiz (art. 371 do CPC/2015).
Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 615/2025, atualizando a Resolução nº 332/2020, para regulamentar o uso de IA pelo Judiciário, estabelecendo diretrizes de governança, transparência e supervisão humana. Essa norma reflete a necessidade de equilibrar inovação com segurança jurídica, evitando que atos automatizados sejam nulos por vícios formais ou substanciais.
Conceitos fundamentais de atos processuais e validade
No direito processual civil brasileiro, atos processuais são manifestações de vontade das partes, do juiz ou de auxiliares que impulsionam o procedimento (art. 200, CPC/2015). Eles podem ser formais (petições, sentenças) ou materiais (citações, intimações). A validade desses atos depende do cumprimento de requisitos formais (tempestividade, forma prescrita) e substanciais (competência, legitimidade), sob pena de nulidade (arts. 276 a 283, CPC/2015). A nulidade só é declarada se houver prejuízo (pas de nullité sans grief), promovendo a instrumentalidade das formas.
Com a inserção da IA, atos como a geração automática de minutas de decisões ou a classificação de processos por similaridade para, por exemplo, sobrestamento de recursos até julgamento de algum tema repetitivo, levantam questionamentos sobre autoria e responsabilidade sobre o ato.
A doutrina, como defendido pelo juiz federal Dr. Paulo Mitsuru Shiokawa Neto em sua tese sobre atos processuais na era digital, argumenta que a IA pode praticar atos acessórios, desde que sob supervisão humana, para preservar a essência humana do julgamento.
No contexto empresarial, onde disputas envolvem contratos complexos e recuperação judicial, a IA pode agilizar análises de dados massivos, mas sua validade depende da rastreabilidade e da ausência de vieses algorítmicos, conforme a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018).
A validade dos atos é ancorada no princípio da instrumentalidade: se o ato cumpre sua função sem ferir direitos, é válido. Contudo, a IA introduz desafios, como a opacidade dos algoritmos (“caixa-preta”), que pode violar a motivação das decisões (art. 93, IX, CF/1988) e, mesmo em caso de revisão/supervisão por um magistrado, violar o princípio do livre convencimento.
Outra utilização da IA com potencial dano às partes se dá no contexto dos processos arbitrais, embora algumas Câmaras Arbitrais como a Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CCBC) presente no Basil já possuam regra específica, as demais câmaras em sua esmagadora maioria, ainda não normatizaram a utilização da IA e a Lei de Arbitragem (9.307/1996) também não foi atualizada para incorporar o uso dessa tecnologia nos procedimentos.
Essa discussão em especial será tema de outro artigo, mas já se pode vislumbrar riscos aumentados aos jurisdicionados pela utilização da IA em procedimento em que não há regra específica, nem mesmo principiológica, sobre sua utilização e validade dos atos praticados pela ferramenta.
Regulamentação atual e parâmetros para validade
Retornando ao contexto dos processos judiciais, a principal norma regulatória é a Resolução CNJ nº 615/2025, aprovada em fevereiro de 2025, que atualiza a Resolução nº 332/2020. Essa resolução estabelece que a IA deve ser usada de forma ética, transparente e com supervisão humana em todas as etapas (art. 19, §3º, II), vedando sua utilização autônoma em decisões judiciais. Atos processuais praticados por IA, como redação de peças ou extração de informações, só são válidos se revisados e aprovados por magistrados, que permanecem responsáveis (art. 19).
Isso se aplica a ferramentas como o MarIA do STF, que auxilia na redação de resumos de votos e respostas a petições, mas restringe-se a processos específicos, com anonimização de dados sensíveis. A classificação de riscos dentro dos tribunais é crucial: sistemas de baixo risco (ex.: organização processual) têm requisitos menores, enquanto de alto risco (ex.: análise de direitos fundamentais) exigem auditorias rigorosas e mitigação de vieses discriminatórios.
A validade é condicionada à transparência: os usuários devem ser informados sobre o uso de IA (linguagem simples), e os sistemas devem ser auditáveis e rastreáveis. No âmbito empresarial, em ações de cobrança ou desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, CC/2002), a IA pode analisar padrões contratuais, mas sua aplicação deve respeitar a LGPD para proteger dados comerciais.
A referida Resolução cria o Comitê Nacional de Inteligência Artificial, com 15 membros, incluindo representantes da OAB e Ministério Público, para avaliar soluções e atualizar normas. Essa governança assegura que atos como intimações automatizadas ou agrupamento de casos sejam realizados de forma válida, respeitando os princípios e diretrizes da Lei e normativa do CNJ, de forma a garantir que não violem o devido processo legal.
Doutrinadores como os autores de “Inteligência Artificial, Atos Processuais e Regras” enfatizam que a IA deve complementar, não substituir, o juiz, evitando nulidades por falta de motivação humana.
Aplicações práticas e critérios de validade
Em disputas empresariais, a IA é aplicada em atos como a automação de petições iniciais ou análise preditiva de sentenças. Por exemplo, plataformas como o PJe utilizam IA para classificar documentos, acelerando processos de falência ou recuperação judicial. A validade depende de: supervisão humana, garantindo revisão; ausência de erros sistemáticos, como vieses em algoritmos treinados com dados enviesados; conformidade com o CPC/2015, como a forma eletrônica (art. 193).
Casos reais, como o uso do ChatGPT em atos processuais, foram mantidos pelo CNJ com regras estritas, permitindo redações geradas por IA se revisadas por juízes. Em contextos civis, atos como citações eletrônicas via IA podem ser considerados válidos se cumprirem os arts. 246 a 249 do CPC, com comprovação de recebimento.
A jurisprudência emergente, como no STF, reforça que decisões apoiadas por IA devem ser motivadas e rastreáveis, evitando nulidades absolutas.
Mas a IA não se faz presente apenas no Judiciário, ela também está presente nos escritórios de advocacia, seja na elaboração de peças processuais, análise de documentos e processos ou, como noticiado em recentes incidentes pela mídia, até em realização de sustentações orais em julgamentos.
Dessa utilização massiva da IA surgem novas questões, uma sustentação oral gerada por IA, mesmo que valendo-se de texto criado pelo e sob a supervisão do advogado responsável pelo caso, possui validade?
A sustentação oral em julgamento é ato privativo do advogado como dispõe o artigo 1º, I do Estatuto da OAB e mesmo que a IA seja uma ferramenta utilizada pelo e sob a supervisão do advogado, como também o são sistemas de informática como o word ou o processo digital, a sua utilização para a prática de ato processual de tamanha importância é adequada, ética e legal? São questões novas que devem ser respondidas pelo Judiciário.
Apesar dos avanços, os desafios persistem. Vieses discriminatórios e falta de transparência no uso e processo decisório da IA podem invalidar atos, especialmente em processos envolvendo direitos fundamentais. A opacidade algorítmica ameaça a transparência (art. 11, CPC/2015), e a dependência de IA pode gerar desigualdades entre tribunais com mais ou menos recursos e bancas de advogados com diferentes acessos à tecnologia. Críticas doutrinárias apontam que a Resolução do CNJ, embora burocrática, é necessária para segurança, mas pode inibir inovação em pequenos tribunais.
A validade dos atos processuais praticados por IA no direito brasileiro é regulamentada e assegurada pela Resolução CNJ nº 615/2025, que impõe supervisão humana, transparência e governança ética. No processo civil, isso promove eficiência sem comprometer direitos das partes litigantes. Futuramente, com o marco regulatório da IA aprovado pelo Senado (2024), espera-se maior uniformidade. O equilíbrio entre tecnologia e humanidade é essencial para um Judiciário e advocacia modernos e justos.
*Julio Garcia Morais é sócio da área cível do Lopes Muniz Advogados.
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