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Relatório sobre Americanas já provoca reações
Material elaborado por comitê teria fechado “ciclo” de participação de cada ex-diretor na fraude
Por Adriana Mattos — De São Paulo
A apresentação das conclusões finais do comitê independente, que investigou por um ano e meio o esquema fraudulento na Americanas, já provocou uma reação no mercado. Há uma busca por informações para acionar os responsáveis juridicamente, ou para melhor alinhar as estratégias para defendê-los. É a primeira investigação fechada sobre o caso – na área criminal, Polícia Federal e Ministério Público Federal continuam a investigar.
A empresa tem que apresentar as informações coletadas, na visão de advogados, por dever de transparência, mas são milhares de arquivos e calhamaços de dados, e, segundo fontes, há informações pessoais e mais sensíveis, ainda a serem analisadas. Procurada, a Americanas informa que fará a divulgação, sem citar prazos.
São cerca de 1,2 milhão de documentos coletados pelo comitê, que realizou cerca de 250 entrevistas com funcionários, ex-empregados e terceiros, num conjunto de mais de 74 terabytes de dados. Isso equivale quase a capacidade total de armazenamento de 300 celulares padrão (com 256 gigabytes).
Não fizeram parte da análise o conteúdo das delações fechadas pelo MPF com os ex-diretores Flávia Carneiro e Marcelo Nunes.
O comitê não teve vida fácil. Liderado pelo advogado Otávio Yazbek, ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o órgão acabava no olho do furação pelo nível de pressão que teve que lidar.
A empresa dependia dele para dar uma resposta mais rápida ao mercado – enquanto a varejista era massacrada pela opinião pública e pressionada por credores de bancos – mas, ao mesmo tempo, a companhia não poderia atravessar o seu caminho.
Logo após o início das investigações, a Americanas chegou a dizer que esperava que o trabalho durasse seis meses, e foram quase 18.
Um desses ruídos ficaram claros quando a empresa decidiu, por meio do CEO, apresentar um relatório na CPI das Americanas, em junho, citando pela primeira vez a existência das fraudes (e utilizando documentos do comitê), quando os trabalhos do próprio comitê ainda engatinhavam.
Além de Yazbek, estavam no comitê Eduardo Flores, professor da FEA/USP, e o engenheiro e ex-conselheiro, Antonio Luiz Manso.
Com o documento fechado, as movimentações de envolvidos na crise já começaram. O Instituto Empresa, associação civil que defende o direito de minoritários, deve acionar a CVM para solicitar o material. Além da CVM, o MPF e a PF também receberão uma cópia, já disse a Americanas.
O Instituto Empresa encabeça, desde junho, um pedido de investigação para reparação de prejuízos e indenização aos acionistas na Securities and Exchange Commission (SEC) e no Departamento de Justiça dos EUA.
A partir da publicação da apresentação, acionistas minoritários, ex-auditores da empresa, credores, investigados acusados das fraudes, além de outras partes envolvidas (testemunhas, supostas vítimas e delatores) passam a ter direito aos dados e conclusões. E pela magnitude do caso, e suas implicações, cabe a abertura pública, dizem os especialistas, inclusive aos funcionários da empresa, que buscam tirar a companhia da crise.
Partem da mesma premissa usada pela rede um ano atrás, quando o presidente do grupo, Leonardo Coelho, foi à CPI de posse dos “achados preliminares”, produzido pelos advogados da empresa, BMA e Vilardi Advogados, sobre o esquema fraudulento.
Coelho alegava que a direção tinha a obrigação de publicar as informações pelos fatos novos recebidos dos advogados, e ainda pela necessidade de transparência.
“A partir do momento em que eu publico o Fato Relevante, fica aberto aos interessados o direito de acessar as informações, até porque todas as partes, direta ou indiretamente relacionadas, precisam avaliar se há medidas legais cabíveis a tomar ou não, especialmente os acionistas minoritários”, diz Miguel Pereira Neto, sócio do Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados, especialista em compliance e contencioso civil. Pereira Neto não atua no caso.
No fato relevante da terça-feira (16), a Americanas diz que as evidências apresentadas pelo comitê confirmam a fraude contábil, e cita as duas já conhecidas ferramentas trazidas na CPI: o uso do risco sacado e da verba de propaganda na fabricação de indicadores falsos. E volta a dizer que os responsáveis não estão mais na rede – trata-se grupo de ex-diretores.
“É curioso que o fato relevante não traz mais nenhum dado novo além do que eles já trouxeram na CPI”, afirma Eduardo da Silva, do Instituto Empresa. “Na prática, até agora, todo mundo continua às escuras, porque o que temos é a apuração da imprensa junto à PF e MPF, e a principal investigação independente permanece sigilosa”.
Na avaliação da advogada Carla Benedetti, da área de compliance e criminal, a Justiça pode atuar protegendo informações sensíveis presentes na apresentação, como questões estratégicas da rede ou pessoais dos envolvidos presentes do relatório. “A empresa pode encaminhar esses dados ao juiz da recuperação judicial para que ele analise e decida sobre os dados mais sensíveis”, diz ela.
“Mas aquilo que o mercado, a sociedade, e a própria empresa têm discutido há meses, vejo que há obrigação por razões de governança e transparência, especialmente ao se considerar que a empresa diz estar aprimorando sua relação com o mercado”, afirma Benedetti, presidente da comissão de criminal compliance do Instituto dos Advogados de São Paulo. Benedetti não atua no caso.
Procurada, a Americanas diz que já está tomando providências para disponibilizar o resultado do trabalho do comitê. E diante “do grande volume de evidências e análises apresentadas”, está avaliando a melhor forma de fazê-lo. Ainda manterá a conduta responsável e diligente na divulgação.
O tamanho interesse nas informações coletadas de forma independente chegou a gerar um conflito interno nas Americanas.
Na época das investigações pelo comitê, a PwC teria atrelado o avanço de seus trabalhos de auditoria na empresa, que estavam atrasados, ao acesso à documentação em posse dos três membros do comitê independente.
A varejista, por sua vez, argumentava que eram materiais sob análise do comitê e não seria preciso acessá-los para a elaboração do trabalho de auditoria. E que isso poderia ser uma espécie de pressão da PwC sobre o comitê.
As divergências cresceram, a relação entre as partes piorou e a Americanas trocou a PwC pela BDO em julho de 2023.
Agora, há grande expectativa de PwC e KPMG sobre os dados – ambas foram auditorias da empresa nos anos seguidos de falsificações de balanços. Há interesse nos documentos levantados pelo comitê para entender a fundo o grau de manipulação dos ex-diretores sobre os profissionais, na tentativa de esconder as manobras. Se confirmar que foram lesadas, caberia ação civil àqueles que agiram em grupo. Procuradas, as empresas de auditoria não comentaram.
O Valor apurou que os escritórios de defesa dos quatro executivos acusados de fraude na rede – Miguel Gutierrez, Anna Saicali, Timotheo Barros e Marcio Cruz – tentam obter a apresentação, alegando ser parte na investigação e ter o direito à mesma base de informações da Americanas. Nos últimos dois dias, a busca foi mais ativa, apurou o Valor.
“Já se sabe, por exemplo, que há uma clareza maior sobre a função específica de cada ex-diretor no suposto esquema, frente aos dados que a PF levantou, para além do que os delatores falavam. Porque os delatores só viam uma parte pequena do todo e não fechavam todo o ciclo”, afirma uma fonte.
Um dos caminhos das defesas é entrar com pedido no MPF, CVM e junto à Justiça. Procurados pelo Valor, os advogados das partes não se manifestaram.
É um pedido obrigatório, considerando o que deve vir por aí.
A Americanas deixou claro, no fato relevante, que avaliará medidas para a defesa dos interesses sociais da companhia e o ressarcimento pelos prejuízos.
O material ainda tem peso relevante porque as informações já prestadas por PF e MPF ainda não relatam detalhadamente como era a interação entre diretoria e o conselho, com representantes do trio de acionistas de referência, formado por Beto Sicupira, Marcel Telles e Jorge Paulo Lemann.
Silva, do Instituto Empresa, diz que a apresentação pode identificar “o nível de comprometimento das estruturas internas da empresa”, e daí, pode ficar mais clara as responsabilidades. Para o instituto, a direção e o conselho tem responsabilidade, mesmo que o conselho não soubesse das fraudes, porque falhou no dever de diligência. E o material pode ser uma peça importante no pedido de investigação aberto pelo órgão na SEC.