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Privatização da Sabesp é inconstitucional

22 de abril, 2024

Lei aprovada na Alesp aliena controle acionário pelo governo estadual, em afronta à Constituição Paulista

RUBENS NAVES

GUILHERME AMORIM CAMPOS DA SILVA

Em dezembro, chancelando iniciativa do governador Tarcísio de Freitas, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aprovou a Lei 17.853/2023, que autoriza a privatização da Sabesp. As principais justificavas apresentadas para a privatização foram o cumprimento de uma promessa de campanha de Tarcísio e a necessidade de solucionar o déficit de saneamento do estado de São Paulo.

Ambas as justificativas são questionáveis. Já a inconstitucionalidade do projeto plasmado na nova lei é fato evidente.

A Constituição Paulista, no seu artigo 216, determinou ao ente público obrigações como a articulação de plano plurianual de saneamento básico e o estabelecendo as diretrizes e programas para as ações nesse campo, observando-se peculiaridades regionais, locais e as características das bacias e recursos hídricos. Em seguida, no parágrafo segundo estabelece que o “Estado assegurará condições para a correta operação, necessária ampliação e eficiente administração dos serviços de saneamento básico prestados por concessionária sob seu controle acionário”.

A Carta Estadual, portanto, desautoriza a aprovação da Lei 17.853/2023, que é absolutamente inconstitucional. Não se trata de matéria controversa nem complexa. Basta verificar que a determinação para que os serviços sejam prestados por concessionária sob seu controle acionário é exatamente o ponto sobre o qual a legislação aprovada avança: a alienação do controle acionário pelo governo do estado.

Não reconhecer essa inconstitucionalidade seria admitir como de sentido incerto e passível de diferentes interpretações as mais simples e objetivos dispositivos constitucionais e legais.

A criação, prevista na citada lei de privatização, de uma classe especial de ações denominadas “golden shares”, que permitiria ao estado vetar futuramente determinadas decisões do novo controlador não altera o simples fato de que em seu âmago o projeto prevê a alienação do controle acionário pelo governo estadual, em afronta flagrante à vedação fixada no artigo 216 da Constituição Paulista. Por óbvio, uma cautela prevista para, alegadamente, atenuar os riscos implicados na perda do controle acionário pelo poder público não anula essa perda.

A promessa e o déficit

Voltando às duas justificativas centrais do governo Tarcísio para privatizar a Sabesp, a primeira, da promessa de campanha, é uma evocação enganosa de compromisso democrático. Segundo pesquisa Datafolha realizada em abril de 2023, poucos meses depois da vitória eleitoral e da posse do governador, 40% dos paulistas aprovavam a privatização da Sabesp, enquanto a maioria (53%) era contra o projeto.

A valorização da vontade popular não se resume à implementação de propostas de campanhas eleitorais vencedoras, mas deve incluir disposição para discutir e revisar parte do que foi prometido por meio do diálogo com a sociedade.

Já a ideia de que a privatização é necessária para superar o déficit estadual de saneamento é praticamente uma inversão da realidade histórica e atual da Sabesp no contexto brasileiro. Ao contrário do que esse argumento dá a entender, o atual modelo institucional da Sabesp como empresa de economia mista controlada pelo governo estadual é um sucesso.

Dados de 2020 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento mostraram que, dos 46 milhões de paulistas, 96,5% tinham acesso ao sistema de rede de água e 90,6% à rede de esgoto, sendo que 70% do volume de esgoto produzido já era tratado. São Paulo é, portanto, o Estado brasileiro mais próximo do cumprimento das metas de universalização do saneamento estabelecidas pelo Marco Legal do Saneamento.

Construção bem-sucedida

O bom desempenho paulista em relação ao saneamento é resultado de vários fatores. Entre os principais, desatacam-se o exitoso modelo jurídico institucional estabelecido, em âmbito estadual, desde o primeiro Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa), em 1971, passando pela consolidação de competências estabelecidas na Constituição Federal em 1988 e na Constituição Paulista de 1989 – que tem como uma peça-chave a manutenção do controle estatal sobre a Sabesp, para garantir a primazia do interesse público nas políticas, planos e gestão do saneamento.

O saneamento básico constitui conjunto de serviços relacionados à dignidade humana, à salubridade ambiental e ao desenvolvimento socioeconômico – princípios fixados nos artigos 1º e 3º Constituição Federal. Serviço público fundamental, e sua prestação e realização são obrigações que devam ser planejadas, articuladas e executadas pelo poder público.

Amparado pelos dispositivos da Constituição Paulista que determinam as obrigações do poder público em relação ao saneamento – incluindo a articulação de diversas instâncias administrativas e geográficas –, o modelo flexível da Sabesp, com a garantia constitucional de controle acionário estatal, tem sido decisivo para o bom desempenho do estado nessa área tão importante para a população.

A defesa da ordem constitucional paulista contra uma clara violação é também, no caso da Sabesp, uma ação decisiva para a continuidade de uma história estadual de responsabilidade, competência e eficácia política, institucional e socioambiental.

(Foto: Agência Brasil)

RUBENS NAVES – Advogado, autor de “Saneamento para Todos” (ed. Palavra Livre) e “Água, Crise e Conflito em São Paulo (ed. Via Impressa). Ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP

GUILHERME AMORIM CAMPOS DA SILVA – Doutor em direito constitucional pela PUC-SP, professor da Fadisp e sócio de Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/privatizacao-da-sabesp-e-inconstitucional-21042024

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