PORTFÓLIO
A omissão do Congresso
ANA VIRIATO
(Foto: Marcos Oliveira/ Agência Senado)
27/10/2022
Ao assumir o comando do TSE, Alexandre de Moraes prometeu que a Corte seria implacável contra a difusão de fake news, deixando para trás as falhas de 2018, quando o Brasil patinou na reação à desinformação em massa. A missão mostrou-se mais difícil do que o previsto. Em uma das campanhas mais sujas da história, o tribunal precisou ampliar seus poderes para conter os estragos de publicações e propagandas mentirosas na disputa pelo Planalto, abrindo espaço para decisões pela remoção de conteúdos por iniciativa dos próprios ministros e reduzindo a margem de tempo para a retirada das postagens do ar. Ao fazê-lo, recebeu a pecha de “intervencionista”.
Mas a postura enérgica do TSE foi, na verdade, uma resposta forçosa diante do acirramento da corrida eleitoral, da apatia da Procuradoria-Geral Eleitoral e, sobretudo, das lacunas na lei, decorrentes da omissão de um Congresso Nacional influenciado pelo bolsonarismo.
Os parlamentares que criticam o tribunal são os mesmos que sentaram em cima de propostas para desmantelar o sistema de notícias falsas e estabelecer punições rígidas aos infratores, além de terem inviabilizado a CPMI das Fake News, que propunha apurar desvios e apontar soluções.
Moraes teve que agir para coibir os abusos na propagação em massa de fake news na Internet: um território sem lei
Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, Fernando Neisser aponta que o novo Código Eleitoral, por exemplo, fecharia uma das maiores brechas da legislação ao enquadrar a “economia de mercado” da desinformação, classificando como crime a oferta e o uso de bancos de dados para disparos em massa.
“Hoje, empresários do ramo de comunicação digital, no máximo, enfrentam ações por abuso de poder e ficam inelegíveis. Para eles, é irrelevante”, argumenta. “Precisamos de previsão legal para que empresas como essas sejam submetidas a multas altas, proibição para contratar com partidos ou o poder Público, apreensão de bens”, completa. A proposta ainda endurece as penas em casos de disseminação de informações falsas com impulsionamento na internet ou quando o crime é cometido pela imprensa.
Em outro boicote ao tripé do combate a informações falsas, em abril, a Câmara, sob a batuta de Arthur Lira, rejeitou a urgência de um projeto que regulamenta a atuação de big techs no Brasil e exige que as plataformas tenham representação legal no país. Nesse caso, o prejuízo à corrida eleitoral foi atenuado pela iniciativa do TSE de manter um canal aberto com as empresas responsáveis pelas redes sociais, a fim de garantir celeridade ao cumprimento de ordens.
“As plataformas, por ora, estão dando conta do recado”, pontua Neisser, embora pondere que adiante o tema terá de ser revisitado por causa das reclamações quanto a prazos para remoção de conteúdos e valores vertiginosos de multas. “Com as fragilidades na lei, o TSE está cumprindo a duras penas a missão constitucional de garantir a legitimidade do processo eleitoral”, anota. “As ações mais incisivas e ações estruturais não me parecem ter ultrapassado o limite da lei ou abarcado a ideia de censura, como se tem dito. Censura é quando se proíbe alguém de falar, não de repetir informações já desmentidas”.
Passos lentos
Ao todo, estão nas gavetas do Congresso 17 projetos para coibir a desinformação. Entre eles, o veto de Jair Bolsonaro, que pode ser derrubado pelo parlamento, a um trecho da lei contra o Estado Democrático de Direito que previa punição para quem espalha “comunicação enganosa em massa”. O governo alegou que este trecho iria contra o interesse da população ao não definir claramente quem seria alvo da punição — quem compartilhou ou quem gerou o conteúdo replicado — e “enseja dúvida se haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico”.
RETORNO A deputada Lídice da Mata defende a volta da CPMI das Fake News: esquema criminoso precisa acabar (Crédito:Divulgação)
Mas o parlamento não falhou somente na análise de propostas. Está suspensa desde março de 2020 a CPMI das Fake News, que iniciou uma investigação sobre a divulgação em massa de desinformação nas eleições de 2018 e o uso das redes para ataques orquestrados contra agentes públicos e instituições. O retorno dos trabalhos até chegou a ser cogitado após o arrefecimento da pandemia da Covid-19, mas, segundo admitem aliados do Planalto, sob reserva, o governo agiu para inviabilizar a retomada das apurações às vésperas das eleições.
Parte dos documentos obtidos pelo colegiado, que costumava ser tumultuado por extremistas, implica o clã do presidente. Uma das quebras de sigilo aponta que um computador do gabinete de Eduardo Bolsonaro foi usado para a criação da página Bolsofeios, voltada a ataques virtuais a adversários do capitão. “Não digo que o avanço das apurações extinguiria as milícias digitais, mas sim que teria identificado financiadores e praticantes, o que inibiria um pouco o esquema criminoso de fake news”, avalia a relatora do colegiado, deputada Lídice da Mata. “A CPMI precisa voltar.
O tema é atualíssimo, vide os escândalos deste ano. Está claro para todos que a desinformação deteriora o Estado de Direito”. A deputada está certa. Tomemos emprestadas as palavras de Gilmar Mendes: entre as razões para a decadência da democracia do país, estão as “omissões calculadas e a conivência oportunista de autoridades”.