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Contra invasões econômicas e desapropriações culturais e jurídicas

5 de dezembro, 2025

Projeto apresentado por ministros do STJ põe em risco o futuro do Direito Contratual e da Jurisdição Nacional

Ernesto Tzirulnik

A classe dos advogados como um todo está sobressaltada com o Projeto de Direito Internacional Privado (PLGDIP) entregue ao presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, nesta quinta-feira (4/12), pelo grupo de trabalho formado por ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Luis Felipe SalomãoMoura Ribeiro e Paulo Sérgio Domingues – e outros especialistas no tema.

Conselho Federal da OAB, em nota assinada pelo seu presidente e pelo presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, concluiu que “a aprovação deste projeto não ocasionará os benefícios econômicos prometidos, mas ao contrário, representará grave retrocesso para o sistema jurídico brasileiro e para a capacidade do país de garantir sua soberania jurídica em um contexto internacional cada vez mais complexo e competitivo.”

O ideal de liberdade não pode ser adversário do desenvolvimento econômico e social, assim como a internacionalização dos negócios não pode prescindir de proteções legais para a defesa dos agentes econômicos nacionais.

Foi justamente por isso que Estados europeus capitalistas e liberais, embora unidos no esforço da sedimentação do direito comunitário europeu, entre 2000 e 2010, reformaram ou produziram leis nacionais de contrato de seguro, ao invés de se limitarem aos regramentos comunitários.

Enquanto alguns proselitistas da globalização jurídica propagandeavam uma inimaginável lei sul-americana de contrato de seguro, o Brasil também cuidou, lenta, mas progressivamente, da edição e sua própria lei especial de contrato de seguro.

O planeta recentemente viveu muitos capítulos da financeirização e da globalização e quase todos vibraram como se fossem movimentos para sempre e em tudo alvissareiros. Entretanto, os diferentes Estados nacionais buscam hegemonia econômica e os mais fortes adotam medidas graves para atingir esse objetivo, como super tarifações protetivas para os seus nacionais: não desconsideram sequer a guerra. A economia mundial é gigante, mas desigualmente repartida nas sociedades e entre os países. Há disputas ferrenhas.

Uma forma de garantir resultados ou posições de domínio é a escolha do ordenamento jurídico que regerá eventual conflito e da jurisdição que decidirá o litígio. A criação de abstrações, como contratos paritários de seguro que inexistem no mundo real, é uma das formas utilizadas para afastar as proteções das leis nacionais; a escolha da jurisdição que decidirá a respeito dos negócios é outro instrumento que pode levar ao mesmo resultado.

Assim, sempre haverá tensão entre as leis nacionais sobre os negócios e o Direito Internacional Privado. Por isso, a lei de Contrato de Seguro brasileira (LCS – Lei 15.040/2024) foi produzida com elevada carga de cogência – o mesmo que imperatividade ou irrenunciabilidade, deixando pouca margem para as partes afastarem regras essenciais para a proteção dos contratantes de seguros e seus beneficiários.

A falsa paridade nos negócios securitários, invariavelmente formatados a partir das imposições naturais de padronização de negócios feitas pelas retrocessões e pelos resseguros internacionais que dão sustentação financeira para as seguradoras honrarem seus compromissos, foi bem identificada pelos legisladores que fixaram na lei a regra da interpretação mais favorável para os segurados e beneficiários. As regras jurisdicionais, relativas aos órgãos judiciários estatais ou às cortes arbitrais, também foram desenhadas e aprovadas para a proteção dos segurados, beneficiários, seguradoras e resseguradores brasileiros, com igual carga de cogência. Embora o Ministério da Justiça tenha defendido o veto das regras que mais incomodavam os resseguradores internacionais, ávidos por liberdade total de lei aplicável e jurisdição, o presidente da República sancionou na íntegra o texto recebido do Congresso Nacional.

Entretanto, mal era aprovada a LCS estrearam duas iniciativas a contrariá-la, notoriamente vocacionadas para proteger os agentes econômicos hegemônicos no setor, principalmente os relacionados com os resseguradores e retrocessionários estrangeiros.

Essas investidas são (i) o capítulo XV da proposta de reforma do Código Civil, texto escrito a jato e sem a participação dos juristas e instituições que haviam participado da elaboração da lei de contrato de seguro (IBDS, CNI, Fiesp, CNT, CNA, Brasilcon, Fenacor, Idec etc.), capítulo esse natimorto onde se postulava a aprovação de regras diametralmente opostas ao regime da LCS que levariam o país ao mais tenebroso regime jurídico securitário do planeta; e (ii) os artigos 28 e 30 do projeto de Lei Geral de Direito Internacional Privado onde seria praticamente anulada a conquista recente do princípio de interpretação in dubio pro segurado conforme ao que é comum no regime jurídico real dos contratos de seguro de grandes riscos e massificados, bem como as conquistas jurisdicionais estatais e arbitrais.

Após os primeiros testes políticos, os autores do projeto retiraram do texto o art. 28 original, cujo teor expressamente permitia a escolha do direito e da jurisdição para presumidos contratos paritários de seguro. Entretanto, remanesceu o art. 30 original, renumerado para 29, cuja disposição é a seguinte: “Art. 29. Exceto se houver abuso, as obrigações decorrentes de contratos internacionais serão regidas pelo direito escolhido pelas partes. O § 5º do mesmo art. 29 permite amplamente a escolha de jurisdição.

Com isso, poder-se-á entender que pouco ou nada teria restado de pé do regime securitário recém conquistado pela sociedade brasileira, ponderadamente protetivo das empresas contratantes de seguros no país. Isto porque se a regra do art. 30 se aplica a todos os contratos, poder-se-ia disputar que ela também incidiria nos conflitos securitários, não obstante regidos por lei especial. Nada representaria, portanto, a supressão do art. 28 sem que o art. 30 ressalve expressamente “os contratos de seguro que serão regidos pela Lei 15.040/2024”.

O Conselhão não pode ter pressa, nem a Casa Civil, nem o governo como um todo, pois está sendo colocado em risco o futuro do Direito Contratual e da Jurisdição Nacional justamente no momento em que os Estados procuram defender-se contra invasões econômicas e desapropriações culturais e jurídicas.

Ernesto Tzirulnik
Advogado, doutor em Direito Econômico pela USP, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e da Comissão de Direito do Seguro e Resseguro da OAB-SP. Coordenou o anteprojeto da Lei de Contrato de Seguro (Lei 15.040/24)

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