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Fim do DPVAT prejudica milhares de pessoas e DPU busca reparação
Ao mesmo tempo que o seguro obrigatório para carros deixou de existir, o DPEM, conhecido como DPVAT dos barcos foi retomado
Jaqueline Fonseca
Imagem: Arte / Metrópoles
Laryssa tinha pouco mais de 20 anos quando viu seu sonho ser interrompido. Cinco anos após se casar com o namorado que conheceu na igreja, aos 17, ela recebeu a notícia de que seu companheiro, Ramon de Jesus Silva, havia morrido em um acidente de trânsito. Ele tinha 28 anos e pilotava uma moto quando bateu frontalmente contra um poste na Rodovia Serafim Derenzi, em Vitória, capital do Espírito Santo.
O rapaz era entregador e estava trabalhando no momento do acidente. Segundo Laryssa, Ramon perdeu o controle da moto ao tentar desviar de um carro que invadiu a contramão. Era sábado à noite. 2 de março de 2024. Ramon morreu na hora e deixou uma jovem viúva sozinha e vulnerável.
Após a morte do marido, Laryssa, que fazia faculdade de administração e estava desempregada, teve que resolver toda burocracia fúnebre sozinha. Ela não tinha dinheiro, família ou informação. Ainda assim, providenciou o traslado do corpo para Minas Gerais onde a família dele mora e acumulou dívidas para conseguir o básico para sobreviver.
Sem perspectiva, ela buscou emprego formal e trancou a faculdade. Vizinhos e amigos ajudaram com cestas básicas para que ela pudesse se alimentar. Além disso, Laryssa começou a fazer confeitos e salgados para vender. Todas as noites ela saía com tortas, bolos de pote, cookies e brownies pelas ruas de Vitória para conseguir uma renda mínima.
Em vulnerabilidade social, Laryssa solicitou auxílios do governo e acionou a Caixa Econômica Federal para receber a indenização de R$13.500 do Seguro DPVAT em função da morte do marido. Mas, na agência, foi informada que não era possível fazer o pedido e que ela deveria acionar a Defensoria Pública para receber o valor do seguro, que foi descontinuado.
“Eu era totalmente dependente do meu marido, eu não trabalhava. As contas [bancárias], eram todas dele e quando ele morreu ficou tudo bloqueado. Foi um período bem difícil. Ali, se eu tivesse conseguido o DPVAT teria me ajudado bastante. Talvez eu até pudesse ter concluído a minha faculdade”, desabafou Laryssa.
Na época do acidente de Ramon, o seguro existia juridicamente, mas estava sem regulamentação e, segundo a Caixa, não havia fundos para o pagamento. Deste modo, Laryssa não conseguiu receber a indenização.
Hoje ela faz parte de uma ação coletiva movida pela Defensoria Pública da União no Espírito Santo contra a Caixa Econômica Federal e a União para garantir o pagamento da indenização do seguro DPVAT para as pessoas que tiveram o pedido negado nos últimos dois anos. A estimativa da Caixa é que cerca de 600 mil pessoas tenham sido lesadas.
“Tenho esperança de receber esse dinheiro, pois iria me ajudar bastante. E é uma forma de me indenizar porque é um direito, que do nada me foi tirado, sem qualquer aviso e no momento que eu mais precisava. E é um direito porque o Ramon pagava o DPVAT da moto, a documentação do veículo estava em dia, então ele pagava, mas quando fui solicitar meu direito foi negado”, ponderou Laryssa.
Seguro DPVAT
O Seguro DPVAT foi criado por lei federal em 1974, para assegurar indenização para vítimas de acidentes de trânsito. Os valores deveriam ser destinados para despesas médicas ou indenização da vítima em caso de invalidez, ou para família em caso de morte.
O fundo era abastecido com recursos pagos pelos proprietários de veículos no ato do licenciamento. O valor variava anualmente conforme o fundo disponível e o porte do veículo.
No entanto, ao longo da história, o DPVAT sofreu uma série de fraudes e controvérsias. Desvios de recursos e golpes diversos foram identificados em investigações estaduais e federais.
Uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no seguro DPVAT e na seguradora Líder — que era responsável pela operação do seguro — identificou graves irregularidades na gestão dos recursos, conflito de interesses e falta de transparência nas operações.
Ainda este ano, mesmo após o fim do seguro, várias operações policiais localizaram golpistas tentando fraudar o DPVAT. Em São Paulo, uma fisioterapeuta foi presa por fraudar laudos para obtenção do DPVAT. Na Bahia, um falso advogado foi preso pela PF por fraudar cerca de 70 pedidos com documentos falsos. Já em Pernambuco, uma quadrilha composta por 19 pessoas, inclusive funcionários públicos, foi desarticulada por fraudar o seguro desde 2021.
Ao longo do tempo, entre 2019 e 2024, a legislação sobre o DPVAT passou por uma série de mudanças, até a extinção definitiva do seguro obrigatório em janeiro de 2025.
Antes disso, em 2023 uma mudança proposta pelo governo fez com o seguro continuasse existindo, porém sem regulamentação e arrecadação. Isso fez com que milhares de brasileiros ficassem em um limbo jurídico.

Arte: Gabriel Lucas/Metrópoles
Reação jurídica ao final do DPVAT
Para garantir o pagamento das indenizações do seguro DPVAT (ou SPVAT) para as vítimas de acidentes de trânsito ocorridos entre novembro de 2023 e dezembro de 2024 (período em que, juridicamente, o seguro existia, mas estava sem regulamentação), a DPU entrou com uma ação civil pública contra a União. A estimativa da própria Caixa é que, ao menos, 600 mil pessoas tenham sido prejudicadas com a falta de regulamentação do seguro.
No processo, a DPU sustenta que cabia à União “adotar as medidas necessárias à cobrança do prêmio e, a partir disso, viabilizar os pagamentos das coberturas por morte, invalidez e reembolso de despesas”. A Defensoria aponta ainda omissão do Estado ao não realizar a regulamentação da lei que alterou o seguro obrigatório.
Antes de mover a ação, foi realizada uma tentativa de conciliação liderada pela Coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da DPU, Maira de Carvalho Pereira. No entanto, não houve sucesso.
Agora, a ação segue em análise na 4ª Vara Cível do Espírito Santo. A expectativa do defensor à frente da causa, Pablo Cruz, é que no começo do ano a Justiça se posicione definitivamente sobre o assunto.
“Essa ação, no fundo, foi proposta para dar alguma segurança jurídica, já que a ausência de regulamentação gerou esse receio coletivo de não ter reparados, minimamente, pessoas que são vítimas de acidente de trânsito e que de maneira individual ou genérica acabam contribuindo para esse grande fundo que é o seguro DPVAT”, ponderou O defensor regional de Direitos Humanos no Espírito Santo.
Em nota, a AGU afirmou que a União, a Caixa e a DPU concordaram com o julgamento antecipado, e o processo está concluso para sentença. A Caixa não quis comentar o assunto.
O advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguros (IBDS) Ernesto Tzirulnik considera que o governo cometeu um erro ao acabar com o seguro sem disciplinar a transição.
“Na terminação do seguro houve uma conduta irresponsável. Porque ele cessou a fonte de renda, cessou a operação, inclusive na consciência social, mas não terminou o seguro. O DPVAT não deixou de existir juridicamente, mas acabou com a operação. E esse é um grave problema que será pago provavelmente pelo Tesouro Nacional, e o Tesouro vai sofrer”, ponderou em entrevista ao Metrópoles.
Tzirulnik define o DPVAT como “um seguro extraordinário”, mas observa que a política pública foi largamente atacada e fatiada ao longo das décadas. Ele pontua que o fundo do seguro obrigatório sofreu desvio de finalidade em vários segmentos e beneficiou atravessadores que enriqueceram às custas dos mais vulneráveis.
O presidente do IBDS defende que os seguros obrigatórios são instrumentos que ajudam “ainda que básica e elementarmente as populações menos favorecidas”, e devem ter os fundos preservados e destinados exclusivamente para a indenização das vítimas. “Para você ter seguro obrigatório, você tem que ter um estado forte e vigilante”, afirmou Tzirulnik.
Segundo a Susep, o valor disponível para o DPVAT atualmente é de R$ 438 milhões de reais; em outubro do ano passado, esse fundo era de R$ 766 milhões. A Susep informou que o valor ausente no fundo foi destinado à operacionalização e ao pagamento das indenizações referentes aos acidentes de trânsito ocorridos até 14 de novembro de 2023.
O Ministério da Fazenda disse em nota ao Metrópoles que “acompanha regularmente a evolução dos fatos relacionados ao Seguro DPVAT por meio de reportes diretos encaminhados pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), inclusive no âmbito de sua atuação no Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP)”.
“Não é imposto, é seguro para ajudar quando precisa”
Segundo a Federação Nacional dos Corretores de Seguros Privados e de Resseguros, de Capitalização, de Previdência Privada, das Empresas Corretoras de Seguros e de Resseguros (FENACOR), enquanto existiu, o DPVAT indenizou cerca de 1 milhão de pessoas por ano.
Uma das pessoas que recebeu o seguro foi o autônomo Valter Ferreira, de 56 anos.
O morador de Brasília recebeu indenização do DPVAT em função de um acidente sofrido em 2012. Quando se acidentou de moto há mais de 10 anos, passou 58 dias internado. Quebrou o fêmur, três costelas e a mão. Além disso, passou por cirurgia e teve uma infecção hospitalar. Na época ele recebeu R$3.500 para auxiliar nas despesas médicas.
Além do próprio caso, ele narra outro episódio, envolvendo o irmão dele. No natal de 2009 o rapaz sofreu um acidente de moto e amputou uma das pernas. Na época, ele recebeu a indenização por invalidez de R$13.500, o que auxiliou a família a enfrentar a situação.
“O DPVAT foi uma coisa que me ajudou. A vida não tem esse valor, mas o dinheiro ajuda. Todo país civilizado tem seguro obrigatório. Muita gente tem ilusão de achar que o DPVAT é imposto, mas não é imposto, é um seguro é para ajudar quando precisa”, pontuou o trabalhador.
DPEM: O DPVAT dos barcos está de volta
Enquanto o Brasil se despedia do velho conhecido seguro DPVAT, o mercado de seguros passou a rever outro seguro obrigatório que havia saído de circulação em 2016. O Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Embarcações ou por sua Carga (DPEM).
O seguro conhecido como o DPVAT dos barcos, voltou a ser vendido em junho de 2024. Há dez anos, as seguradoras alegaram que o produto não era sustentável e as empresas deixaram de vender o seguro.
Agora, uma única seguradora do país teve interesse em comercializar o produto. A Akad, adotou uma dinâmica de vendas online para reduzir os custos e tornar a aquisição do seguro obrigatório mais simples. Cerca de 287 mil bilhetes foram emitidos. O valor básico do bilhete é R$22,00 e mais de R$290 mil foram pagos em 41 sinistros com embarcações.
Odete Queirós, head de parcerias e afinidades da Akad, explica que o valor do seguro é obrigatório para os proprietários de embarcações e existe para auxiliar eventuais vítimas de acidentes náuticos, independente da participação no sinistro.
“É um produto que cobre danos pessoais causados a terceiros. Então a gente tá cobrindo morte e invalidez em decorrência de um acidente náutico. Pensa que se tiver um naufrágio, os passageiros e tripulantes têm cobertura. É um produto de cunho social. O DPEM cobre os danos decorrentes de morte ou invalidez em função desses acidentes”, explicou Odete.
A Marinha, responsável por fiscalizar as embarcações, tem autuado e notificado os responsáveis pelos cascos que ainda não regularizaram o seguro. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) apontam que 384 multas foram aplicadas após o retorno do seguro, enquanto ao longo de 2016 — último ano de funcionamento do DPEM antes da suspensão — foram aplicadas 429 multas em todo país.
Segundo a Susep, as multas passaram a ser aplicadas um mês após a volta da obrigatoriedade do seguro.
O presidente da comissão de cascos marítimos e aeronáuticos da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), Carlos Polizio aponta que a volta do seguro resgata o direito de populações que utilizam os meios náuticos para locomoção ou lazer. O responsável pelo setor na FenSeg acredita que, com o passar do tempo, a cobertura do seguro será ampliada no território nacional.
Polizio defende ainda que a fiscalização do produto deveria ocorrer ativamente, não só pela Marinha, mas por toda autoridade náutica desde o despacho da embarcação para a água.
“A fiscalização mais assídua seria um passo muito importante. Se fosse assim, poderia ter sido arrecadado muito mais neste primeiro ano e não é só pelo prêmio, mas pela proteção das pessoas que estejam a bordo de uma embarcação”, defendeu.
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