PORTFÓLIO

Estatais: o mito liberal e as realidades do mundo

Estatais: o mito liberal e as realidades do mundo
O desafio real, em completa dissonância com o mito liberal, não é extingui-las, mas aprimorar sua governança e suas capacidades
Por Elisa Vieira Leonel e Lea Vidigal
Circula com força, em certos setores da opinião econômica, a ideia de que empresas estatais somente deveriam existir em hipóteses excepcionais. Essa visão, contudo, afasta-se da disciplina constitucional e ignora a realidade empírica do capitalismo contemporâneo. É uma leitura ideológica, não jurídica, e, mais grave, uma mistificação da dinâmica econômica mundial.
A Constituição brasileira não conferiu ao Estado um papel marginal na economia. Pelo contrário: no Título VII, instituiu uma ordem econômica voltada à justiça social, à redução das desigualdades e à soberania nacional. As estatais são meios concretos para fins explícitos, instrumentos constitucionais de ação estatal direta. Falar em “exceção” é obscurecer a unidade entre soberania econômica e popular que a Constituição desenhou.
O equívoco se acentua quando se afirma que países desenvolvidos prescindem de estatais. Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em 2017, havia cerca de 1.500 estatais multinacionais com mais de 86 mil subsidiárias no mundo. De 2000 a 2023, o número de empresas entre as 500 maiores do mundo com 25% ou mais de participação estatal subiu de 34 para 126. Em 2023, essas empresas detinham US$ 53,5 trilhões em ativos e mais de US$ 12 trilhões em receita (OCDE, 2024). Mesmo economias aparentemente “mais liberais” mantêm investimentos estatais em setores estratégicos, como energia, telecomunicações, tecnologias essenciais, financiamento, defesa, saúde, infraestrutura e outras.
A Equinor, petrolífera norueguesa, está longe de ser exceção. A EDF francesa é uma das maiores empresas de energia do mundo. Na Alemanha, o Estado da Baixa Saxônia detém participação estratégica na Volkswagen e há mais de 20 mil empresas com participação relevante do setor público (25% ou mais) naquele país; nos EUA, o Tesouro sustenta empresas-chave no mercado hipotecário, como Fannie Mae e Freddie Mac, e a robusta rede de corporações de financiamento agrícola que compõem o Farm Credit System, assim como a Farmer Mac, para citar os exemplos mais famosos. Só no Estado de Nova York atuam mais de 600 public benefit corporations nos mais variados setores: recursos hídricos, desenvolvimento local, transporte, infraestrutura, hospitais, agricultura, energia e outros.
No Brasil, as estatais foram fundamentais para o desenvolvimento de diversos setores econômicos de sucesso. Desde o Banco do Brasil do século 19 até a criação do BNDES, da Petrobras, da Embrapa e da Caixa Econômica Federal, as empresas estatais foram alicerces da industrialização, da infraestrutura, do acesso à moradia, da pesquisa agrícola que transformou a agricultura tropical e da inclusão bancária. Elas estruturaram cadeias produtivas, democratizaram o crédito, financiaram o longo prazo e viabilizaram saltos civilizatórios. Em 2024, o conjunto das estatais federais brasileiras, que detém R$ 6,7 trilhões em ativos, produziu R$ 1,3 trilhão em faturamento, R$ 629,8 bilhões em valor bruto – equivalente a 5,36% do Produto Interno Bruto (PIB) – e R$ 116,6 bilhões em lucro líquido (Sest/MGI, 2025). Essas empresas empregaram, de forma justa, mais de 441 mil pessoas, recolheram R$ 228,3 bilhões em tributos e realizaram entregas que impactam a vida cotidiana de milhões de brasileiros.
Em inúmeros casos, aliás, assumem funções que o setor privado não quer ou não pode cumprir. Fazem investimentos arriscados e de longo prazo. Geram lucros e, para além da racionalidade do investidor-maximizador individual, externalidades globais positivas, soberania econômica e inovação tecnológica.
O desafio real, em completa dissonância com o mito liberal, não é extingui-las, mas aprimorar sua governança e suas capacidades. A Lei 13.303/2016 introduziu padrões de governança corporativa, gestão de riscos, independência dos conselhos e maior transparência que servem de referência ao setor privado e devem ser ainda mais fortalecidos.
Assim, nos aproximaremos das economias mais dinâmicas do mundo, com investimentos estratégicos e efeitos positivos para toda a economia, que passam longe – com razão em diversos casos – das prioridades da empresa privada, focada no lucro de curto prazo do acionista.
O Brasil enfrenta desafios típicos de economias periféricas: dependência tecnológica, desigualdade, lacunas de infraestrutura, baixa complexidade produtiva endógena. Como nas grandes economias, as estatais são instrumentos imprescindíveis de planejamento, de criação de mercados e da promoção de desenvolvimento sustentável e justo. A experiência internacional confirma: estatais são protagonistas no capitalismo do século 21.
O discurso da “ineficiência estatal” é apenas verniz ideológico para privatizações oportunistas. A questão real é: como fortalecê-las para que cumpram sua missão constitucional? O governo federal tem dado passos importantes nessa direção, como o Programa de Governança e Modernização das Empresas Estatais, o Inova. Essa é a pauta republicana e tem sido endereçada. Tudo o mais é mito, distante do ordenamento jurídico nacional e da realidade econômica mundial. As estatais são importantes demais para serem gerenciadas por mitos.
Opinião por
Elisa Vieira Leonel
Secretária de Coordenação de Governança das Empresas Estatais do Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos
Lea Vidigal
Doutora e mestre em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo
https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/estatais-o-mito-liberal-e-as-realidades-do-mundo/





