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Filho perdoa o pai por tentativa de homicídio, e júri absolve o réu
Debora Alexandre
Do UOL, em São Paulo
Um júri popular em Porto Alegre absolveu Jani Francisco do Amaral, 58, acusado de tentar matar o próprio filho em 2017. A decisão — tomada por quatro votos a dois— ocorreu após a vítima pedir que o pai fosse perdoado porque não queria aumentar o sofrimento da avó, mãe do réu.
O que aconteceu
Guilherme Santos do Amaral, 30, filho de Jani, sofreu uma tentativa de homicídio oito anos atrás. Guilherme tentou impedir o pai de vender rodas do carro para obter drogas. Em 2017, Jani, dependente químico havia anos, tentava retirar as rodas do carro da mãe para trocá-las por crack. O filho o confrontou e acabou sendo atacado com um facão.
A agressão quase foi fatal, e Guilherme teve de ser socorrido ao hospital. O homem golpeou o filho com o lado não cortante da lâmina —os chamados “pranchaços”— e, no terceiro golpe, atingiu a cabeça do jovem, que sobreviveu.
Anos depois, Jani sofreu um AVC, o que o deixou em cadeira de rodas. A doença reaproximou a família. Guilherme, a vítima, passou a cuidar do pai, levando-o ao hospital e ajudando nos cuidados diários.
Guilherme não quis ir ao julgamento. Representantes do Ministério Público falaram com o filho um dia antes —ele disse não querer a condenação do pai e nem aparecer no julgamento.
No julgamento, a cena do pai debilitado comoveu os jurados. A mãe do réu compareceu empurrando a cadeira de rodas do filho e, em determinado momento, precisou deixar o julgamento para trocar a fralda de Jani. Segundo Tatiana Boeira, defensora de Jani, a imagem da idosa foi determinante para o pedido de clemência.
“Eu não tinha tese jurídica possível. Pedi que os jurados olhassem para aquela mãe e não deixassem que ela sofresse de novo”.
Tatiana Boeira, defensora pública, que atuava na defesa de Jani
O Ministério Público havia pedido a condenação de Jani por tentativa de homicídio duplamente qualificado, mas os jurados decidiram pela absolvição. Segundo a defensora de Jani, a decisão representa um raro exemplo de justiça restaurativa, já que vítima e agressor já haviam reconstruído os laços familiares.
Clemência: quando a dor pesa mais que a pena
A clemência é um instrumento previsto no tribunal do júri, que garante aos jurados o poder de absolver um réu por razões de humanidade, mesmo diante das provas. É uma tese moral e jurídica ao mesmo tempo, e também uma forma de reconhecer que a punição, em determinados casos, não traria justiça, apenas mais dor.
A defesa usou a clemência como única estratégia. Segundo Tatiana Boeira, foi a primeira vez em 23 anos de atuação que ela sustentou a clemência como tese exclusiva, sem combinar com nenhum outro argumento jurídico.
“Eu não tinha como alegar legítima defesa e nem negativa de autoria. O réu havia assumido o ato e o risco. Mas havia algo maior ali — o perdão do filho e o sofrimento daquela mãe”.
Tatiana Boeira
A defensora fez um apelo aos jurados. Tatiana pediu que os jurados olhassem para a idosa, mãe do réu, que empurrava o filho em cadeira de rodas, e questionou se condenar aquele homem doente traria algum benefício.
“A clemência é o que resta quando o direito não alcança a humanidade do caso. É um pedido para que a Justiça olhe com o coração”.
Tatiana Boeira
Por quatro votos a dois, os jurados acolheram o pedido e absolveram o réu. A defensora definiu o momento como “um dos mais emocionantes” da carreira.
Justiça restaurativa
A clemência é raríssima, dizem juristas. A criminalista Ana Krasovic, do escritório João Victor Abreu Advogados, classificou o caso como “excepcionalíssimo”. Segundo ela, “a dor do réu pode ser entendida como sua própria pena”.
“A clemência é um mecanismo jurídico legítimo. O requisito é o sofrimento real do réu pelo que cometeu –um abalo emocional que o acompanhará para sempre”.
Ana Krasovic
A clemência não pode virar sinônimo de impunidade e nem ser usada para justificar crimes em nome da emoção, diz a advogada. “A dor precisa ser verdadeira, e o perdão, resultado de uma reparação concreta. Caso contrário, o instituto perde sentido e enfraquece a credibilidade da Justiça.”
O caso foi um exemplo de justiça restaurativa. “É o caso clássico em que o arrependimento e o perdão genuíno substituem a punição. A culpa e o remorso tornam-se penas permanentes”, completou Krasovic.





