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Carf estabelece baliza sobre ‘distribuição disfarçada’ de subvenções
Recentemente, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) proferiu uma decisão de grande impacto no processo 10380.730875/2018-01 (Acórdão 1402-007.098), reacendendo o debate sobre a interpretação das normas que regem as subvenções para investimento e a distribuição de dividendos, especialmente em estruturas societárias complexas como as holdings. A controvérsia, que envolveu um montante significativo, sublinha a crescente atenção do Fisco e dos órgãos julgadores administrativos à substância econômica das operações, desafiando arranjos que, embora formalmente válidos, podem desvirtuar o propósito de benefícios fiscais.
A decisão serve como um importante balizador para empresas e administradores, não apenas no que tange à conformidade tributária, mas também, e talvez principalmente, no âmbito da governança corporativa e da gestão de riscos.
Cenário da controvérsia: subvenções, MEP e dividendos por empréstimo
O caso analisado pelo Carf envolveu uma empresa beneficiária de subvenções para investimento — incentivos concedidos pelo poder público para estimular a implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, controlada em 99,9% por uma holding, cujo único investimento relevante era justamente essa participação.
A holding distribuiu dividendos a seus sócios, sendo que os lucros que lastreavam essa distribuição eram, em grande parte, reflexo dos resultados da investida apurados por meio do Método de Equivalência Patrimonial (MEP). O ponto principal é que, para efetivar o pagamento desses dividendos, a holding recorreu a um empréstimo bancário.
A fiscalização autuou a holding, argumentando que a distribuição de dividendos, com base em ganhos de MEP oriundos das subvenções, configurava uma “destinação diversa” daquela permitida pelo artigo 18 da Lei nº 11.941/09. Esse dispositivo legal estabelecia as condições para que as subvenções não fossem tributadas, sendo uma delas a sua manutenção em reserva de lucros específica e a vedação de qualquer uso que desvirtuasse sua finalidade incentivadora. A Receita Federal entendeu que a holding funcionou como um “veículo” para o que classificou como “distribuição disfarçada de lucros” derivados das subvenções.
Substância econômica prevalece
O Carf, por voto de qualidade, negou provimento ao recurso do contribuinte no tocante à tributação das subvenções. O colegiado administrativo alinhou-se à tese da Fazenda Nacional, fundamentando que a essência econômica da operação se sobrepôs à sua forma jurídica.
Para o Carf, a despeito de a subvenção ter sido formalmente recebida pela controlada e o lucro distribuído pela holding, a cadeia de eventos revelou que os recursos incentivados, que deveriam permanecer na empresa subvencionada para fins de reinvestimento, foram indiretamente repassados aos sócios da controladora.
A manobra de tomar um empréstimo para viabilizar a distribuição de dividendos — cujos lucros contábeis tinham origem nas subvenções — foi vista como uma tentativa de elidir a regra de “destinação diversa” imposta pelo artigo 18 da Lei nº 11.941/09. A decisão reforça que a interpretação das condicionantes de isenção deve ser literal e restritiva (artigo 111, II, CTN), impedindo que a interposição de uma holding esvazie o propósito da norma.
Além do cerne da subvenção, a decisão do Carf também manteve a glosa de despesas financeiras (juros e IOF) decorrentes do empréstimo para pagamento de dividendos, reafirmando que tais gastos não se enquadram nos requisitos de “necessidade, usualidade e normalidade” (artigo 299 RIR/99) para serem dedutíveis. A base para essa conclusão é a ausência de vínculo direto com a atividade produtiva da holding, que se valeu do empréstimo para uma finalidade societária (distribuição de dividendos) sem geração de caixa própria para tal. Por fim, o acórdão ratificou a tributação reflexa da CSLL, seguindo as regras do IRPJ, e, em um ponto bastante debatido, confirmou a possibilidade de concomitância entre multa isolada (por falta de recolhimento de estimativas) e multa de ofício (por recolhimento a menor do tributo), prevalecendo o voto de qualidade.
Dever de diligência do administrador
Ainda que a decisão do Carf tenha focado na questão tributária, ela levanta questões profundas sobre a gestão empresarial e a governança. A estratégia de utilizar um empréstimo para distribuir dividendos baseados em lucros de MEP derivados de subvenções, com o objetivo implícito de contornar regras fiscais, impõe riscos à companhia.
Conforme abordado em outro artigo — “Carf reacende debate sobre tributação na distribuição de dividendos” —, mesmo que uma operação fosse considerada fiscalmente lícita em um primeiro momento, as implicações financeiras e de governança podem ser severas. A decisão de distribuir dividendos sem lastro em geração de caixa própria da holding, exigindo um empréstimo oneroso para cobrir essa lacuna, expõe a empresa a riscos de liquidez e de endividamento desnecessário.
Essa prática, ao desvirtuar a finalidade de um incentivo público e onerar a empresa com dívidas para fins de distribuição, coloca em xeque o dever de diligência dos administradores. O artigo 153 da Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/76) exige que o administrador empregue, no exercício de suas funções, “o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”. Tomar um empréstimo para pagar dividendos derivados de subvenções, em um contexto de questionamento fiscal, poderia configurar uma falha nesse dever, caracterizando imprudência ou negligência.
A responsabilização dos administradores (artigo 158 LSA) surge quando há prejuízo à companhia causado por culpa ou dolo, ou por violação da lei ou do estatuto. A decisão do Carf, ao declarar a inobservância das condições para a manutenção do benefício fiscal, já apontaria para uma possível violação legal que resultou em autuação e, consequentemente, prejuízo à companhia. Ações que criam passivos para financiar distribuições controversas estão distantes da gestão prudente que se espera de um “bom administrador de empresas”.
Planejamento integrado e responsabilidade ampliada
A decisão do Carf no caso das subvenções reforça uma tendência clara: a prevalência da substância econômica sobre a forma jurídica em planejamentos tributários que buscam otimizar benefícios. Para as empresas, o recado é direto: benefícios fiscais têm uma finalidade, e estruturas que tentam desviar essa finalidade estão sob forte escrutínio.
Para os administradores e consultores, o caso é um lembrete contundente de que a análise de uma operação não pode se restringir ao seu aspecto tributário isolado. É imperativo um planejamento integrado, que considere as implicações contábeis, societárias e, fundamentalmente, as de governança. A prudência na gestão do caixa, a justificação econômica das despesas e a transparência na utilização de incentivos fiscais são elementos fundamentais para mitigar riscos e garantir a perenidade do negócio.
No caso, a “distribuição disfarçada de subvenções”, invocada pelo fisco, não seria apenas uma violação fiscal; seria, sob a ótica da governança, um indicativo de fragilidades na gestão que podem ter consequências amplas, incluindo a responsabilização dos gestores e a exposição do patrimônio da empresa a riscos desnecessários. O desafio é caminhar com sabedoria, garantindo que as estratégias empresariais estejam alinhadas não apenas com a letra da lei, mas também com seu espírito e com os princípios de uma boa governança.
Adauto Lúcio S. Dutra
é consultor do escritório Ayres Westin Advogados.