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Saudades de gritar: “este é o meu país”

19 de outubro, 2022

Marco Antonio R. Nahum, Desembargador aposentado do TJSP, membro da equipe de Rubens Naves Santos Jr. Advogados

Houve uma época em que eu tinha orgulho de dizer “Brasil”, onde estivesse. Não era em razão da política, porque não havia motivo para se orgulhar ou se envergonhar da política desenvolvida no Brasil. Afinal, nossa Constituição era chamada de “Constituição cidadã”, e o Estado Democrático de Direito que ela assegura é resultado da conciliação entre desenvolvimento econômico e política social, conquistado por todos os países democráticos após a Segunda Guerra Mundial.

Naquela época, eu podia divergir de quem quer que fosse, mas isso era resolvido nas eleições, ou em plebiscitos. E minha tese sobre qualquer tema ou meu candidato a qualquer cargo não se confundiam com time de futebol. Ninguém pretendia sufocar a opção política do rival. Parecia que todos nós havíamos aprendido com Amos Oz, em “Como Curar um Fanático” que, muitas vezes, o fanatismo começa em casa com a disposição de mudar um parente “para o próprio bem dele”, e que este impulso faz do fanático um grande “altruísta”, alguém que deseja o que pensa como melhor para a vida alheia. Não, não éramos fanáticos.

Também, não era em razão do futebol que eu sentia esse orgulho do meu país. Pelé era unanimidade. Simplesmente “o Rei”. Ademir da Guia era “Divino” para todos. Pedro Rocha, “o Príncipe”. Zico, “o Galinho de Quintino”. Rivelino, “a Patada Atômica”. Não havia discordância raivosa, destemperança exacerbada sobre esses gênios, nem em conversa de botequim.

Você podia escrever ou dizer elogios livremente. Não precisava ter receio do vizinho.

Noel Rosa foi parceiro de Vadico em “Conversa de Botequim”. Certa vez, Noel fez um samba para enaltecer “Vila Izabel”, o que resultou numa provocação de Wilson Batista com “Conversa fiada”. Da provocação nasceram sambas maravilhosos. Só.

Escola de Samba também. Cada um tinha a sua. Eu nunca tive nenhuma, embora “a Mangueira” tivesse Jamelão, e eu o achasse magistral.

Certa vez, quando ouvi uma gravação de Djavan num restaurante, em Amsterdam, tive vontade de gritar “essa música é do meu país! É o mesmo país do Tom Jobim!”.

Orgulho de ser brasileiro, creio, por tudo que o Brasil me permitia.

Mas, hoje, parece impossível tamanho orgulho. Ainda que o tenha, por medo do vizinho não posso exteriorizá-lo quando sinto. Os diálogos são caracterizados pela preocupação de “não dizer o que o outro não quer ouvir, mesmo que seja a sua verdade”. Não é a dele. Não pode ser dita.

Os jovens, hoje, possuem personalidades com identidades binacionais, enraizadas em cultura nacional e, ao mesmo tempo, em valores globalizados voltados para o individualismo e consumismo, além de um certo “retardo” na vida adulta com características de adolescência continuada. Chamam “guerra digital” o espargir de mentiras de um candidato sobre o outro. E há os heróis dessas guerras, que promovem campanhas de desinformação! Quanto mais mentiras sobre o outro candidato mais importante ele fica! Propostas e planos de governo, nem pensar. Não agrega voto!

Naquele Brasil, definia-se a eleição como “festa” cívica. Sim, festa caracterizada pela paz social. Reafirmavam-se de maneira pacífica os valores nacionais e a legitimação do poder constituído, embora ainda não tivéssemos alcançado a importância da representação igualitária das mulheres e da diversidade de gênero.

Havia eleitores que não transferiam o título de sua cidade natal para poder voltar, encontrar parentes e amigos, e festejar o momento de civilidade.

Sim, a eleição era, de verdade, a festa da civilidade. Após votarem, muitos reuniam-se com amigos, indiferentes ao sectarismo do companheiro, sem qualquer medo, simplesmente para, juntos, verem a cidade passar (ou a banda no dizer do Chico Buarque).

Naquela festa cívica, asseguro, não se sentia o desejo que sinto hoje de pedir o meu país de volta, para que eu volte a ter orgulho de ser brasileiro e não ter medo do meu vizinho.

https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/saudades-de-gritar-este-e-o-meu-pais/

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