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Bolsonaro se beneficiará de mudança na Ficha Limpa? Juristas divergem
Bolsonaro se beneficiará de mudança na Ficha Limpa? Juristas divergem
Condenação por organização criminosa é o que pode impedir benefício ao ex-presidente, afirma parte dos especialistas; outros entendem que defesa pode pedir novo entendimento
Foto: Vitória Nunes
Por Bernardo Mello
Uma alteração recente na Lei da Ficha Limpa gera divergência, entre juristas, sobre a possibilidade de o ex-presidente Jair Bolsonaro encurtar o período fora das urnas após ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no caso da trama golpista. No início de setembro, o Congresso aprovou um projeto para limitar o tempo de inelegibilidade a oito anos após a condenação, o que vai de encontro ao texto atual da lei, que soma esse prazo após o cumprimento da pena. Especialistas ouvidos pelo GLOBO se dividiram: uma parte considera que a condenação por organização criminosa impede essa redução ao ex-presidente; outra parte avalia que a defesa pode pleitear o novo entendimento.
A Ficha Limpa não faz menção explícita a condenações por crimes contra a democracia, e juristas têm diferentes interpretações sobre os artigos nos quais eles podem ser encaixados para tornar seus autores inelegíveis. O texto aprovado pelo Congresso, e que aguarda sanção ou veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, prevê a contagem mais branda do prazo de inelegibilidade para crimes como de abuso de autoridade e de dano ao patrimônio.
Se enquadrado nessas hipóteses, Bolsonaro pode ser beneficiado e escapar dos oito anos extras de inelegibilidade, embora siga com direitos políticos cassados durante o cumprimento de toda a pena aplicada no caso da trama golpista, o que pode tirar Bolsonaro das urnas até 2052. Na prática, a volta às urnas em um tempo mais curto ainda dependeria também de uma possível redução das penas via Congresso ou STF.
Por outro lado, uma alteração feita no Senado às vésperas da votação do projeto excluiu condutas mais graves, como contra a administração pública e “crimes praticados por organização criminosa”, da mudança de contagem — nesse caso, vale a regra de oito anos “após cumprimento da pena”.
— Em tese, o STF entendeu que todos os crimes, incluindo tentativa de golpe e abolição do Estado democrático, foram cometidos por uma mesma organização criminosa — afirmou o advogado eleitoral e criminalista Michel Saliba.
Em benefício do réu
Já o advogado criminalista Eliseu Mariano, especialista em Tribunal do Júri e Execução Penal, enxerga uma brecha para as defesas devido ao fato de que a lei de organizações criminosas, aplicada na condenação de Bolsonaro, é de 2013, posterior à Ficha Limpa, de 2010.
— Como a questão de organização criminosa é colocada de forma taxativa na Ficha Limpa, é possível aplicar no caso de Bolsonaro, mas as defesas também podem alegar que a lei só retroage em benefício do réu, e não para prejudicá-lo. Meu entendimento é que as defesas conseguirão argumentar uma inelegibilidade de oito anos — afirmou.
Mariano também pontua que a duração da pena pode ser alterada, ao longo do seu cumprimento, por aspectos que gerem sua remição, como bom comportamento do condenado e prescrição relacionada à idade.
Para Beatriz Alaia Colin, advogada do escritório Wilton Gomes Advogados e especialista em Direito Penal, o crime de organização criminosa “atrai a inelegibilidade desde a condenação até o transcurso de oito anos após o cumprimento” de toda a pena, fixada em 27 anos e três meses para Bolsonaro. Ainda que a pena dada ao ex-presidente por organização criminosa tenha sido de sete anos e sete meses, o efeito de afastamento das urnas, segundo Colin, vale pela duração integral da sentença.
Na ata do julgamento, a Primeira Turma solicitou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) seja comunicado das penas “para aplicação da inelegibilidade”. A advogada afirmou que o cálculo, porém, tem de ser feito pela Justiça Eleitoral “no momento do pedido de registro de candidatura”, caso Bolsonaro tente concorrer a algum cargo eletivo.
— O juiz eleitoral analisará a situação concreta, verificando se ainda persiste o lapso temporal de inelegibilidade previsto em lei — explicou.
O ex-presidente tem afirmado, desde antes do julgamento da trama golpista, que pretende registrar candidatura nas eleições de 2026. Ele já está inelegível, no entanto, até 2030, devido à condenação no TSE por abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação referente à reunião com embaixadores em que fez ataques às urnas eletrônicas. A defesa de Bolsonaro apresentou recurso contra essa condenação ao STF. O relator sorteado foi o ministro Luiz Fux, que ainda não despachou sobre o caso.
Tire suas dúvidas do futuro de Bolsonaro
Quando as penas começarão a ser cumpridas?
A sentença só começa após o trânsito em julgado — ou seja, quando se esgotam todos os recursos disponíveis.
As defesas poderão apresentar, em até cinco dias, embargos de declaração, voltados para esclarecer contradições ou imprecisões nos votos dos ministros. Como nenhum dos réus recebeu dois votos para absolvição, não cabe a apresentação dos embargos infringentes, tipo de recurso que levaria a análise do caso para o plenário do STF.
Bolsonaro e os outros sete réus, portanto, começam a cumprir as respectivas penas depois que a Primeira Turma analisar os embargos de declaração, o que deve ocorrer até o próximo mês.
Bolsonaro precisará cumprir toda a pena na cadeia?
Não. A Lei de Execução Penal prevê a passagem do regime fechado — em que o condenado fica integralmente na prisão — para o semiaberto, no qual é possível trabalhar fora da cadeia durante o dia, e depois para o aberto, em que o recolhimento noturno pode ocorrer na própria casa.
Essas mudanças, chamadas de “progressão de regime”, dependem do tempo de cumprimento da sentença. A legislação exige, no mínimo, 16% (um sexto) do tempo de condenação antes de progredir do regime fechado. No caso de crimes que envolvam “violência à pessoa ou grave ameaça”, no entanto, a regra de progressão é mais lenta, com a exigência de 25% (um quarto) do tempo.
— Entendo que os crimes que levaram à condenação de Bolsonaro se encaixam na hipótese de progressão a partir de 25% do cumprimento da pena, e não na hipótese de 16% — afirmou Daniel Kakionis Viana, professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Cruzeiro do Sul.
O ex-presidente foi condenado a 27 anos e três meses, mas o período de “reclusão” — isto é, de regime fechado — estabelecido no voto do ministro Alexandre de Moraes, e seguido pela maioria da Primeira Turma, foi de 24 anos e nove meses. Assim, Bolsonaro teria de cumprir, em tese, até pouco mais de seis anos de prisão antes de passar ao semiaberto.
Esta análise, no entanto, será feita pelo STF a partir de eventuais pedidos da defesa de Bolsonaro. A legislação também condiciona a progressão de regime à demonstração de “boa conduta carcerária” por parte dos condenados.
Os condenados podem iniciar o cumprimento da pena em suas casas?
Sim. De acordo com os especialistas, as defesas podem pleitear, antes ou depois do trânsito em julgado, que determinados condenados não têm condições de cumprir a pena em regime fechado.
O especialista em Direito Penal Daniel Kakionis Viana explica que “não existe condenação em regime domiciliar” na lei brasileira, mas que os juízes podem modular a forma de cumprimento da sentença antes mesmo de seu início.
Segundo a advogada criminalista Ana Krasovic, sócia do escritório João Victor Abreu Advogados Associados, o juiz “excepcionalmente pode determinar prisão domiciliar” em casos que envolvam maiores de 70 anos ou “acometidos por doença grave” — circunstâncias que a defesa de Bolsonaro já afirmou que levará para análise da Corte.
— É o entendimento do Supremo que, em hipóteses excepcionais, é passível a aplicação do regime domiciliar mesmo em casos que a pena imposta implique em regime semiaberto ou fechado — afirmou Krasovic.
Em um caso recente analisado pela Primeira Turma do STF, o ex-presidente Fernando Collor de Mello ficou cinco dias em um presídio em Maceió, após ser condenado a oito anos e dez meses em regime fechado; posteriormente, a Corte o autorizou a cumprir pena em domicílio, após a defesa alegar que Collor sofria de problemas de saúde.
Em que momento o STF definirá o local de cumprimento das penas?
Esta definição ocorre quando o tribunal emite a chamada “guia de recolhimento”, documento que formaliza o início da execução da pena, após o esgotamento de todos os recursos. No caso de Collor, por exemplo, esta guia foi emitida pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, após negar o seguimento de embargos infringentes apresentados pela defesa do ex-presidente. Em despacho naquela ocasião, Moraes determinou que Collor fosse levado para um presídio de Maceió, mas que ficasse em uma sala especial, por ser ex-presidente.
Bolsonaro pode ser destinado a uma sala na Superintendência da Polícia Federal em Brasília, a um batalhão da Polícia Militar ou a uma unidade das Forças Armadas. O Exército dispõe, no Distrito Federal, de 20 salas do Estado-Maior aptas a receber condenados na trama golpista.
De que maneira a idade de Bolsonaro influenciou no tipo de pena?
O fato de Bolsonaro ter mais de 70 anos serviu como redutor das penas impostas pelos ministros do Supremo. Em seu voto, Moraes explicou que reduziu as penas de Bolsonaro e de outros réus na mesma faixa etária em um sexto, para todas as condutas, por ser uma “circunstância atenuante” prevista no Código Penal.
Segundo juristas, a redução de pena para maiores de 70 anos é “compulsória”, ou seja, independe da vontade do juiz. Embora o Código Penal não especifique o tamanho da redução, os especialistas avaliam que Moraes seguiu a jurisprudência da Corte.
— (A redução de) Um sexto é uma prática, embora não haja regra quanto a isso — afirma o criminalista Miguel Pereira Neto.
Por outro lado, apesar da idade ter sido atenuante na pena de Bolsonaro, Moraes aplicou um “agravante” para o ex-presidente, também previsto na legislação, ao apontá-lo como “líder” da organização criminosa — posição seguida nos votos da maioria dos ministros. Nesse caso, a legislação prevê um aumento de até dois terços na pena do crime de organização criminosa, que foi aplicado por Moraes.
Os militares condenados também perdem as patentes?
A eventual perda de patente, que vale para militares da ativa e da reserva, terá de ser analisada pelo Superior Tribunal Militar (STM). O procedimento que pode levar a esse tipo de sanção, no entanto, só é instaurado pelo STM contra oficiais das Forças Armadas condenados a penas superiores a dois anos. O tenente-coronel Mauro Cid, condenado a dois anos, não deve ser alvo, portanto, de perda de patente.
Ao perder a patente, o militar também fica sem receber soldo. Esta remuneração, no entanto, é transferida atualmente para a esposa ou filhos do militar punido.