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A Operação Carbono Oculto e o mercado financeiro
A Operação Carbono Oculto e o mercado financeiro
Segundo o advogado Júlio César Soares, a exigência da e-Financeira por parte das fintechs já deveria ter sido instituída há muito tempo
Por Jorge Priori
Conversamos com Júlio César Soares, especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza, sobre a Operação Carbono Oculto e o seu braço no mercado financeiro.
Como as fintechs envolvidas no esquema eram utilizadas?
As fintechs funcionavam como bancos paralelos, atuando no início da cadeia de legalização do dinheiro. Isso porque o crime organizado se aproveitou do marco regulatório que diz que as fintechs não são, propriamente, instituições financeiras, mas que fazem parte do Sistema de Pagamento Brasileiro.
As fintechs recebiam o dinheiro das fraudes do setor de combustíveis e faziam o fracionamento desses valores através de depósitos em várias contas, em uma operação conhecida como “smurfing”, misturando esse dinheiro com receitas aparentemente legítimas de empresas de fachada. Nesses termos, teriam sido movimentados R$ 46 bilhões entre 2022 e 2024.
Como os fundos de investimento envolvidos no esquema eram utilizados?
Depois que o dinheiro passava pelas fintechs, os recursos eram canalizados para, pelo menos, 40 fundos de investimento, sendo que esses fundos adquiriam ativos reais com altos valores, como participações em usinas, fazendas e terminais portuários, além de imóveis de luxo e frotas de caminhão.
Na prática, os fundos funcionavam como uma camada final de integração, dando uma aparência de legalidade aos recursos. É como se fosse uma cadeia complementar, onde as fintechs eram o ponto de entrada e de ocultação inicial dos valores, que eram difíceis de serem rastreados devido à pulverização, e os fundos faziam a integração patrimonial. Ou seja, as fintechs transformavam o dinheiro sujo em dinheiro aparentemente circulante no sistema formal, e os fundos consolidavam esse dinheiro em investimentos sofisticados, blindando os reais beneficiários.
Sem as fintechs como um atalho, dificilmente os fundos poderiam receber essa escala de valores sem que os mecanismos de alerta fossem acionados para que fosse verificada a origem dos recursos.
A nova instrução normativa da Receita Federal pode diminuir a margem para a ocorrência desse tipo de problema?
Pode, pois a nova Instrução Normativa busca tornar a fiscalização mais rigorosa e dar à Receita Federal acesso a dados mais completos. Com a obrigatoriedade de as fintechs transmitirem a e-Financeira, como se fossem um banco integrante do sistema financeiro nacional, a possibilidade de um esquema desse tamanho funcionar por muito tempo fica reduzida, já que a Receita passa a ter elementos para fiscalizar com mais rapidez a origem dos recursos. Como esse esquema estava funcionando há alguns anos, se a Receita Federal tivesse tido acesso a informações mais detalhadas há mais tempo, ela poderia ter reagido antes.
Os gestores dos fundos tinham como saber a procedência dos recursos e para o que os fundos estavam sendo utilizados?
Esse é um ponto delicado. Os fundos em si, como pessoas jurídicas, se encontram em uma situação de difícil responsabilização, mas gestores, administradores e, inclusive, custodiantes, teriam, pela Lei de Prevenção à Lavagem, uma responsabilidade legal direta sobre a forma como os recursos entram e circulam nos seus fundos, pois, em tese, eles teriam que exercer um dever de diligência para que pudessem saber de onde o dinheiro está vindo.
De qualquer forma, é preciso apurar a conduta, pois se alguém vai ser responsabilizado por dolo ou negligência, seja por omissão, seja por ação, é preciso comprovar que ele deveria ter agido de forma diferente. Obviamente, essa é uma questão processual que vai se desenrolar dentro do inquérito.
A Instrução Normativa vai em cima das fintechs, mas existe alguma legislação que trate desse tipo de controle para os fundos?
Os fundos estão submetidos à Lei de Lavagem de Dinheiro. Nesse sentido, eles têm como dever identificar e manter cadastro de cotistas, manter registro detalhado das operações e comunicar ao Coaf operações suspeitas ou acima de determinados limites. Além disso, os fundos devem adotar controles internos para prevenir a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo.
Se o administrador ou gestor de um fundo não cumprir com esses deveres e aceitar aportes sem a verificação da origem dos recursos ou deixar de comunicar movimentações atípicas, ele pode ser responsabilizado tanto civilmente quanto administrativamente, já que os fundos são regulados pela CVM.
Vai haver muita discussão a respeito desse ponto, já que, obviamente, os gestores ou administradores dos fundos vão dizer que os mecanismos de controle foram utilizados, mas como o dinheiro foi esquentado antes de chegar ao fundo, isso fez com que a operação tivesse uma aparência de normalidade.
Qual a sua avaliação sobre o ocorrido?
Como o crime organizado sempre encontra uma forma de atuar, a Operação Carbono Oculto nos mostrou que precisamos de uma sintonia fina nos mecanismos de controle e de prevenção à lavagem de dinheiro, já que o crime organizado não consegue sobreviver sem transitar recursos através do sistema financeiro e bancário.
A obrigatoriedade da e-Financeira por parte das fintechs é o primeiro passo para que se tenha uma fiscalização mais efetiva, mas isso já deveria ter acontecido há muito tempo. Além disso, é preciso desenvolver meios para que os mecanismos de prevenção não estejam sempre um passo atrás do crime organizado.
Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar algum ponto à sua entrevista?
Como advogamos para vários fundos, sendo que nenhum deles está envolvido na investigação, nós estamos vendo que eles estão preocupados com a possibilidade de novas obrigações acessórias e até mesmo principais. Isso porque como existe um movimento pendular, se o crime organizado puxou para um lado, a tendência agora é que a Receita Federal puxe para o outro.
Ainda não se falou em aumento de tributação, mas o governo sempre aproveita esses episódios para tornar o processo mais rigoroso e um pouco mais caro para os contribuintes. É por isso que é preciso estar atento ao que vem pela frente.
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