PORTFÓLIO

Herança digital? Saiba como funciona a sucessão patrimonial com criptoativos
Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Por Gustavo Boldrini, da Broadcast
São Paulo, 19/08/2025 – Uma decisão inédita do Superior Tribunal de Justiça (STJ) da semana passada ampliou um debate que vem adquirindo cada vez mais importância no universo do direito patrimonial no Brasil: a chamada herança digital. Afinal, o que a lei regulamenta a respeito da sucessão de bens ‘intangíveis’, como os criptoativos?
Na decisão, que teve como relatora a ministra Nancy Andrighi, a 3ª turma do STJ criou um procedimento judicial para acessar os bens digitais armazenados no computador de uma pessoa falecida. A medida prevê a nomeação de um ‘inventariante digital’, ou seja, um profissional capacitado para acessar o conteúdo do equipamento e verificar a existência de bens patrimoniais ou não para a construção do inventário.
Esse procedimento, porém, não faz parte da lei, uma vez que o Código Civil ainda não possui uma especificação a respeito da herança de bens digitais, como explica Renata Mangueira de Souza, especialista em direito da família e sucessões no Gasparini, Barbosa e Freire Advogados.
“Como não temos legislação para isso, trabalhamos com a jurisprudência atual, enquanto não se muda o Código Civil para abranger essa questão”, comentou a advogada, acrescentando que o tema da herança digital faz parte do Projeto de Lei (PL) 4/2025, que prevê uma reforma na regulamentação.
Se você investe em criptomoedas, pode ser que nunca tenha pensado no ativo em termos de sucessão de recursos. Mas é importante se atentar ao assunto para evitar problemas futuros, garantindo que o patrimônio construído não se perca por falta de ação.
A seguir, entenda como funciona a sucessão patrimonial com criptoativos atualmente e como está o andamento do PL que pode incluir a herança digital no Código Civil:
Como funciona a sucessão patrimonial com criptoativos?
A sucessão patrimonial desse segmento pode se tornar um problema, caso o investidor não se prepare para isso, explica Ana de Mattos, analista técnica e trader parceira da Ripio.
Segundo ela, “ao contrário da conta bancária, o Bitcoin e outros criptoativos só podem ser acessados por quem controla as chaves privadas. Sem as chaves, não há acesso, nem com ordem judicial“.
Por isso, é importante que o investidor se prepare. E, para entender como funciona a sucessão patrimonial no mundo das criptomoedas, também é preciso separar esses ativos pela forma de custódia deles.
Para comprar um Bitcoin, por exemplo, você tem duas opções. Ou abrir uma conta em uma exchange e fazer a aquisição, com a corretora exercendo a custódia daquele ativo, ou comprando diretamente por meio de uma wallet, num processo chamado de autocustódia. Ou seja, o próprio investidor tem a custódia daquele ativo.
No primeiro caso, a sucessão costuma ser mais fácil. “Algumas exchanges dão a opção de deixar uma pessoa como herdeira, como se fosse um seguro de vida, e isso pode facilitar o processo”, aponta a advogada Renata Mangueira de Souza.
Mas, no caso da autocustódia, a questão é mais profunda. Afinal, a senha para acessar uma wallet digital é única e intransferível. Ou seja: ninguém poderá ter acesso sem essa informação, e os ativos poderão virar “poeira digital”, caso o investidor falecido não deixe a chave com alguém ou não tenha organizado um arranjo prévio.
Dentre essas alternativas, Ana de Mattos, da Ripio, destaca três opções:
- Multisig, ou assinaturas múltiplas, um tipo de wallet digital que possui mais de uma chave para acesso e pode ser compartilhada entre membros de uma família;
- Divisão segura de seed, uma chave que prevê uma fórmula matemática que possibilita o acesso à wallet por um familiar ou pessoa designada mesmo sem ter a senha em si;
- Mecanismo de inatividade, função que garante que os fundos sejam transferidos automaticamente para outra wallet, se não houver atividade por um período de tempo.
“O caminho mais prático hoje é uma combinação entre listar o que existe de bens e onde estão eles, formalizar a vontade via testamento ou curadoria digital, e definir um passo a passo técnico de acesso que funcione na ausência do titular”, comenta Ana de Mattos.
Projeto de Lei busca regulamentar herança digital
O Projeto de Lei 4/2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), busca atualizar o Código Civil brasileiro para incluir, dentre outros temas, a questão do direito civil digital. Um dos objetivos é regulamentar a forma como ativos e bens em formato digital podem ser transferidos em caso de falecimento.
O projeto foi apresentado em janeiro em plenário, mas ainda não está tramitando. Enquanto isso, o investidor precisa fazer o que está em suas mãos, prevenindo-se e pensando na sucessão patrimonial, ainda que isso possa parecer assustador, como recomenda a advogada Renata Mangueira de Souza.
“Falar da sucessão não é só falar de morte, mas imagine se você tem criptomoedas e fica com um problema de incapacidade civil. Se você precisar do dinheiro e não deixou essa senha com ninguém, como fica? Por isso, a importância de refletir sobre o tema.”, argumenta.